quinta-feira, 7 de maio de 2015
Machado de Assis: leitor, formador de leitores
Se
não o maior, um dos maiores e mais significativos da história da literatura
brasileira. Um grande leitor, foi Machado : leitor formado por
leituras e consultas feitas com pleno desvelo durante toda sua vida; um
enorme, gigantesco formador de leitor, melhor dizendo : criador de leitores --
mais quantitativamente intenso e qualitativamente significativo do que qualquer
outro escritor, não apenas do século
XIX, também do século XX, do século XXI, hoje, e para todo o sempre – por via
de citações,referências e recorrências perpetradas por ele em seus textos,
quais diálogos intertextuais com grandes autores de várias épocas e geografias
culturais : malgrado o ser numa
sociedade marcada por aterradores níveis
de analfabetismo, escassez de público-leitor, indigência e aridez cultural.
Tais cenários e elementos, no geral, constituem
vetores essenciais acerca da
constituição literária machadiana – por extensão, de sua biografia intelectual.
Neste
particular, subsiste implícita e explicitamente uma mensagem : Machado de Assis tornou- se grande
escritor, e grande formador de leitores,
porque muito leu e muito recolheu de autores e obras, entre clássicos antes
dele e contemporâneos a ele, que informaram, influenciaram, formaram e moldaram
sua magistral obra literária.
Extrapolada
e aplicada funcionalmente a círculos estudantis, acadêmicos, culturais, até
mesmo profissionais, a mensagem emite seus significantes e significados : “leiam, leiam muito, pois
assim se tornarão grandes ledores de modo geral, e especificamente conforme o caso e escolhas de cada um,
grandes escritores, ou grandes profissionais, ou grandes especialistas --
grandes cidadãos em suma”.
Machado ‘encontrou’, desde os primórdios de sua
atividade literária, um público leitor
--- restrito e incipiente, como o era o
leitorado durante todo o século XIX, vivente e componente em uma sociedade de
elevadíssimo nível de analfabetismo,
inserido num contexto cultural de prática de leitura quase que
exclusivamente em jornais, de resto baseada
preponderantemente na oralidade ; quando dos primeiros anos do século XX, já
‘dispunha’ (pelos 8 anos em que viveu nos Novecentos) de leitores em maior
número, melhor formados e instruídos (embora os índices de alfabetização e
educacionais ainda se mostrassem bastante precários, absolutamente
insatisfatórios.
Apesar
de todas as deficiências estruturais e conjunturais, Machado sempre respeitou o
leitor de seu tempo, moldando sua escrita, sua narrativa, seus textos
(ficcionais e não-ficcionais) ao gosto, hábitos e expectativas do receptor de
sua obra – apesar de sempre buscar [ele,Machado] promover certas variações e
‘subversões’, praticar provocações e
desafios, com o intuito de cada vez mais
fazer o leitor integrar-se ao que lhe
era posto diante dos olhos. Justamente por respeitá-lo, e empenhar-se em
enredá-lo na narrativa e estimulá-lo a assumir interpretação própria dos
elementos narrados, foi um excepcional formador desse leitor, oferecendo-lhe
todas as possibilidades de informação, conhecimento e acesso a autores, obras e
textos os mais representativos e expressivos da Literatura, brasileira e sobremodo estrangeira.
Sob
a égide e o ‘domínio’ do Romantismo-- cuja
grande contribuição para o país foi possibilitar a criação da idéia de
cultura e de identidade nacionais, com a popularização das letras, por via do aumento do número de periódicos, alguns
com linha editorial exclusivamente artístico-literária – Machado,
cronologicamente primeiro nos contos, em seguida nos romances
dirigia- se (não poderia ser diferente)
ao leitor, que era do ‘público de jornal’, afeito aos folhetins
estrangeiros, ‘submisso’ aos elementos e
parâmetros românticos – e assim moldava e construía suas tramas, sua narrativa
e evocava citações e alusões a autores e obras basicamente românticos.
Quer
nas narrativas curtas quer nos romances, Machado já apontava para um certo afastamento do padrão literário
romântico vigente e contrariava as expectativas do leitor brasileiro de então –
seduzido, acostumado e ‘treinado’ por histórias de forte apelo sentimental,
,inteiramente afeito aos folhetins estrangeiros. Esboçado,embora esparsa e
incipientemente, nos contos anteriores,
incrementado em seguida nos romances – desde Ressurreição (1872), passando em graus diferentes e variados, por A mão e a luva (1874) Helena (1876) : o seguinte, Iaiá Garcia já revela outros elementos e vieses(até por
ser publicado em 1878, ano crucial na
evolução literária machadiana).
De
um modo geral, os leitores que Machado
figurou e formou nos contos publicados
até à década de 1870 e nos primeiros
romances caracterizam-se, a par de relativa não-homogeneidade entre eles, pelo
plano machadiano de prepará-los para
receber inovações e variações na estética, na estilística, na narrativa
romântica. Machado já apontava para um
certo afastamento do padrão romântico literariamente vigente e contrariava as expectativas do leitor brasileiro do início
da década de 1870 , propondo-se
sobretudo – esboçado,embora esparsa e incipientemente, nos contos anteriores e nos dois primeiros
romances – a ‘criar’ e constituir um
novo leitor,distanciado da prosa convencional, ainda que mantido sob as ‘balizas’ do gosto romântico,
como não poderia deixar de ser : um “leitor perspicaz”, um “leitor arguto”, um
leitor precursor das futuras obras.
Leitor
que iria sofrer substancial, e quase radical,
transformação a partir de 1880, quando passa a ser provocado, instado a descobrir significados
ocultos e subjacentes, sub-reptícios nos textos machadianos – seja nos
romances, a partir de Memórias póstumas
de Brás Cubas, seja nos contos, notadamente naqueles enfeixados em Papéis avulsos, seja nas crônicas (o que
já se iniciara em “Notas Semanais”, em O Cruzeiro ,
1878, retificado em “Balas de Estalo”, na Gazeta
de Notícias, 1883-86 , consolidado em “Bons Dias!”, Gazeta de Notícias, 1888-89, confirmado em “A Semana”,Gazeta de Notícias, 1892-1900)) – e
estimulado a ter suas próprias opinião e posição. O leitor colocado como que
num estado de alerta para as aparências das linhas narrativas – posto diante do
conhecido ‘narrador enganoso, não-confiável ’ machadiano.
Para
quem os escritores brasileiros imaginavam escrever – e para quem de fato
escreviam ? Quem era o leitor a que se
dirigiam? da (imensa) minoria alfabetizada(a contrapelo do analfabetismo
elevado); adulto; preponderantemente mulher, no início; freqüentador de cafés e confeitarias, de teatros e casas de espetáculo,
freqüentador de saraus e salões literários, freqüentador de livrarias.
E o
que liam esses leitores, especialmente os habitantes do Rio de Janeiro, sede da
Corte Imperial,? Em primeiro lugar, vinha o gênero "romance", depois
os manuais de utilidade prática, que ensinavam higiene, magia, como curar
doenças com remédios caseiros, como acertar no jogo do bicho, como criar porcos
etc. e, em seguida, os livros de histórias infantis. Em comum a todos esses
livros, o preço: geralmente brochuras com valores que oscilavam entre cem a mil
réis (o equivalente aproximadamente a um terço do ganho diário de um trabalhador
-- sendo mil réis o preço mínimo do que se pagava por uma refeição barata no
largo da Carioca...)
Fossem romances ou livros práticos, a leitura ‘praticada’ durante o
Império foi-se disseminando e sedimentando ao longo das décadas Oitocentistas,
até a instauração da República – e daí incrementada(ainda que longe das escala
e níveis desejáveis) -- por pequenos surtos de popularização do livro, porém
sempre limitado majoritaria e geograficamente ao Rio de Janeiro.
A
rigor, os leitores de livros brasileiros
eram basicamente os habitantes das grandes cidades que trabalhavam no setor
terciário. O mercado do livro brasileiro continuava concentrado no Rio de
Janeiro -- não ultrapassavam o número de
algumas centenas em cada uma das principais cidades do Brasil: Recife,
Salvador, São Luís, São Paulo, Ouro Preto, Belém, Porto Alegre.; e também nos
centros urbanos das regiões prósperas.
______________
Nada
de repetitivo ou redundante enfatizar
: no decorrer de todas as ‘fases’ e
estágios de sua trajetória literária, no exercício dos passos gradativos que a pontuaram e pautaram
, Machado – quer na ficção quer na não-ficção -- alterou formas e ritmos
narrativos, processou e consolidou mudanças na ‘ideologia’ temática de seus
textos, transmutou narradores e vozes narrativas --
sobremodo foi formando ,criando, ‘construindo’ um novo leitor – não a
figura ‘vaga e vaporosa’, ‘volúvel’, pouco dado a leitura, não o leitor
idealizado pelos primeiros românticos brasileiros como “público de arte(porque
Povo)” [sic], educado pelo artista:
mas sim um leitor mais integrado e condizente da realidade e sobretudo passando
a ser um elemento fundamental para a almejada sedimentação, malgrado todos os
fatores adversos (carência educacional, analfabetismo, exigüidade do leitorado,
indigência do meio cultural, “o gosto
mal formado do público pelas artes estrangeiras”), uma sociedade leitora no Brasil Oitocentista.
Inquestionável
é que Machado de Assis prosseguiu por todo o século XX e continua neste século
XXI a forjar leitores, de distintos tipos e distintas instâncias -- nestas eras de crescentes escalas e modos de aplicação de
suas obras em programas curriculares, didáticos e paradidáticos, nos circuitos
escolares de todos os níveis, o que enriquece a Educação brasileira (malgrado
inaceitáveis carências e insuficiências ainda persistentes); eras de avanços
nos hábitos e práticas de ler entre brasileiros, mas inda insuficientes (repete-se
a cada ano o fraco índice de leitura de 2 livros por habitante) para uma
efetiva sociedade de leitores no país ; eras de acentuado desenvolvimento de
recursos e meios digitais incrementados, disponibilizados e postos a serviço da
geração,difusão e circulação de matéria literária, matéria textual e matéria
jornalística, sobremodo criando novos tipos e gamas de leitores; eras também de
notável expansão do conhecimento e estudo de Machado de Assis e sua obra no
Exterior, quer nos círculos acadêmicos
quer nas esferas editoriais.
E
assim será, ‘machadianamente’, atraindo,
formando, construindo novos leitores,por
todos os tempos, por meio e luzes de sua magnífica obra.
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