quinta-feira, 14 de maio de 2015
Machado de Assis e a escravidão
pelo 13 de maio
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Machado
de Assis nunca deixou de exprimir seu mais absoluto horror à escravatura –
fosse como funcionário da Diretoria da
Agricultura do Ministério da Agricultura (órgão que tratava da política de
terras e da aplicação da Lei do Ventre Livre, de 1871), na qual emitiu centenas de pareceres e réplicas no
sentido de fazer cumprir a Lei e o preceito de liberdade para os filhos de escravos
nascidos , fosse em muitos artigos e crônicas e,em especial, em romances e
contos. Exatamente ao contrário da equivocada e distorcida interpretação --que
,como toda interpretação, é uma ‘leitura’,sujeita pois a melhor avaliação e até
mesmo contestação --difundida ao longo dos anos,no sentido de não ter ele se
integrado à causa abolicionista (sic)
nem ter inserido o negro, ou a
negritude,ou a condição do negro, em seus escritos, nem ter nenhum ‘herói
negro’ entre os protagonistas de sua ficção, como se isso fornecesse
convincente e taxativo certificado de consciência política , como se fosse
elemento imprescindível na construção de romances e contos de qualidade. Os
detratores teimam em julgar o homem com base nos raramente compreendidos e
assimilados artifícios do ficcionista e do cronista – ainda mais quando este
utiliza ad nauseam os recursos da
sutileza, do subterfúgio, da dissimulação.
Além
de tudo, não se queira exigir de Machado uma postura – a mesma,p.ex., de abolicionistas (muitos deles seus amigos) ,
de outra verve e atitude – de militância ativa, discursiva, panfletária : nada
disso fazia parte de sua natureza,e discrição aliás foi o que sempre ostentou
na vida e na própria escrita literária.
Machado
fez da escravatura objeto crítico – por vezes desenhada pelas ‘entrelinhas’,
por vezes direta, nada oblíqua ou dissimulada -- de crônicas, de poemas, de peças teatrais, de contos, além de torná-la pano de fundo de
alguns romances, tanto os primeiros como
aqueles pós-1880. Já é mais do que tempo de obrigatória releitura da
equivocadissima omissão machadiana em relação à escravidão e às relações
inter-raciais no Brasil do século XIX , de seu absurdamente propalado “aburguesamento” e de “denegação das origens” em sua obra.
A
tese da ‘alienação’ machadiana desmorona ao se examinar o naipe de contos em
que a “iníqua escravidão” é exibida criticamente, nas linhas e entrelinhas, com
todos seus horrores; é solapada ao se ler, por exemplo, as crônicas de
18.07.1864, de 04.04.1865,01.10.1876,15.06.1877,14.07.1878,07.11.1883,23.111885,30.08.1887,27.09.1887,11.05.1888,19.05.1888,20\21.05.1888,27.05.1888,01.06.1888,26.06.1888,14.05.1893,04.11.1897
; perde vigor ao conhecer os contos “Frei Simão”,“Virginius”,”Mariana”(que
aborda a escravidão de forma tão mais incisiva
e realista que veio a ser publicado em duas versões, em 1871 e em 1891), “O caso da vara”, “Pai
contra mãe”; ao se deparar com os poemas “Sabina”(1875) e “13 de maio”(1888) ,
ou ao conhecer a crítica teatral à peça “Mãe”(1860), de José de Alencar, e o
texto “O teatro de José de Alencar”(1866); além das
referências,citações,comentários e verdadeiros libelos expostos na novela Casa Velha(1885) e nos romances Ressurreição (1872),Helena(176),Iaiá Garcia(1878),Memórias póstumas de Brás Cubas(1881), Quincas Borba(1891),Dom
Casmurro(1899) – observando-se o quanto o processo histórico que resultou
da lei de 1871, assim como suas conseqüências,
encontra-se no cerne da concepção
desses seis romances -- Esaú e Jacó(1904) e no derradeiro Memorial de Aires(1908) – este, além de retratar
a decadência e extinção da própria escravocracia, personalizada no Barão de
Santa-Pia,sob uma narrativa revestida de contundente historicidade e , como o
condizente grand finale da obra de um portentoso escritor, ressaltando o papel
político da literatura como guardiã dos fatos passados e da memória coletiva de
um país
A
crônica, até mesmo por sua própria natureza de dirigir-se diretamente ao público-leitor, na verdade foi
a seara onde Machado melhor e mais clara e veementemente expressou sua implacável crítica ao
escravagismo – mormente na série “Bons Dias!”, publicada na Gazeta de Notícias ininterruptamente de
05 abril de 1888 a
29 agosto de 1889 (per se como se
sabe um período crucial da história brasileira, entre a concretização da
Abolição e a emergência da República), de todos os conjuntos croniquescos de
Machado aquele de mais contundente teor crítico,fosse à escravidão fosse ao
novo regime , aquele que registra opiniões nunca expressadas por ele com tanta
clareza e coerência, tanto que valeu-se ‘sensatamente’ do anonimato (somente
descoberta autoria de Machado, por Galante de Souza, na década de 1950!),dada
não só a explosiva complexidade do momento mas também ao risco,diante do
delicado tema da república , que um
funcionário público graduado da monarquia pudesse correr.
Em
algumas delas, escritas com sua peculiar ironia ácida e cortante , evidencia-se
a crítica machadiana à hipocrisia política, manifesta naqueles
parlamentares que intitulavam-se
abolicionistas mas votavam sempre a favor dos senhores – o que exibe,sob outro
viés, a inquestionável atualidade de Machado [neste particular, aliás, convém
saber – como ressalta o historiador José Murilo de Carvalho, in D. Pedro II,2007 – que os políticos de
todos os partidos ,até mesmo os liberais e os republicanos, não se opunham à escravidão].
Na
verdade, e sob o espectro mais geral, Machado foi um crítico contundente da
sociedade e das instituições brasileiras, e escreveu muito sobre política, e
até mesmo sobre economia. Tinha, sim, opiniões políticas — era um monarquista
liberal, não apoiava a República -- e é
possível observar a política brasileira de sua época através de seu olhar
literário. Raymundo Faoro (em A pirâmide
e o trapézio) sentencia que pode -- se vislumbrar toda a sociedade
brasileira do século XIX na obra de
Machado : tanto na ficção quanto na não-ficção, arrancou da História a
própria substância de suas narrativas e textos , utilizando uma série de elementos
políticos -- escravidão, liberdade, golpe de Estado, censura,aparelho policial,
autocracia absolutista,totalitarismo, etc – na elaboração,em sua escritura literária, de uma crítica da ideologia brasileira e de uma
teoria política avançada, a qual no
campo dos estudos literários não foi adequadamente percebida pelos
especialistas. Há de se enfatizar ainda que, a par de outros aspectos, uma das
grandes preocupações de Machado, uma espécie de linha-mestra, fulcro e fio
condutor de sua produção não-ficcional
centrava-se na questão da identidade
nacional — preocupação expressa claramente nos
ensaios “O passado, o presente e o futuro da literatura” (ainda em
1858), “Instinto de nacionalidade”(de
1873) e “Nova geração”(1879) e na essência de seus artigos e crônicas.
Em
outro viés, justamente os recursos da
ficção literária, sempre propícia a esse fim, foram os instrumentos que lhe
permitiram expressar com nitidez seu total e visceral repúdio ao sistema
escravocrata do Brasil do século XIX. Por meio de alguns de seus contos, é
possível observar as relações inter-raciais de sua época através do olhar
literário, abordando as tensas
relações,inclusive as de ordem afetiva e sexual, entre os membros da família
patriarcal típica do século XIX e seus criados negros e abrigando
trama,ambiência, personagens e ‘ideologia’ inerentes à questão escravagista.
Ficção e
realidade, ficção e história, ficção e sociedade brasileira constituem fulcros
sempre presentes na obra machadiana. Em boa parte de sua ficção e da não-ficção Machado oferece
ao leitor uma interpretação satírica, por vezes alegórica, desnudando mitos e certezas, aparências e
disfarces, dilemas e mentiras -- sob o mesmo clamor crítico-satírico de seu
olhar ,por vezes direto e transparente,por vezes machadianamente oblíquo e
dissimulado, feito testemunho
incomparável sobre a vida política e
institucional brasileira do século XIX.
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