quarta-feira, 23 de abril de 2014

Shakespeare, Cervantes, Machado de Assis

 hoje, 23 abril, é data histórica – para muitos, a Data Magna – da Literatura : primeiro, em 1564 – há exatos 450 anos, portanto [e as comemorações estão todas concentradas nesse teor] – nascia William Shakespeare, muito mais do que o maior escritor da língua inglesa e o maior dramaturgo de todos os tempos : tão grandioso e incomparável que é, personaliza a própria essência da Cultura universal, do próprio pensamento intelectual do Ocidente- da literatura, da filosofia, da história, da política, da arte, das ciências humanas (vide o que dele definiu o crítico e ensaísta Harold Bloom); e  morreria na mesma data em 1616 – quando também morreu outro dos gigantes literários e culturais da História, Miguel de Cervantes, dado como o maior escritor espanhol e um dos maiores do mundo, autor da obra  consensualmente considerada pioneira e criadora  do  romance moderno, Dom Quixote de La Mancha.
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Em exercício de ilação absolutamente coerente e condizente com a magnitude de três verdadeiros gênios literários, desenvolvi e estabeleci em trabalhos  de distintas amplitudes e finalidades – mas tendo como denominador comum estudos de Literatura Comparada – as relações de Machado de Assis com Shakespeare e com Cervantes.

Machado de Assis e Shakespeare --- anotações de um estudo

Aqui, apenas algumas anotações. O estudo das relações  entre Shakespeare e Machado de Assis integram dois projetos de trabalho mais amplos : “Machado de Assis e os ingleses”, parte do programa “Machado de Assis e Literatura Comparada”(que inclui os franceses ;os portugueses; os alemães; os gregos; os espanhóis – preponderantemente Cervantes -- ,italianos e latinos; e “Machado de Assis : leitor, formador de leitores”.

O ‘bardo’ britânico  foi incomparavelmente a maior influência – e não apenas literária, mas sobretudo filosófica e até mesmo ‘ideológica’ – em Machado : inclusive, o  mais incidente nas citações,alusões ,referências e recorrências [ a propósito : melhor e mais apropriadamente devendo se consubstanciarem no moderno termo de intertextualidades; constituem-se os efetivos elementos bibliográficos transmitidos e ‘transferidos’ – apropriado seria dizer `transplantados’ --por Machado a seus leitores, com eles estabelecendo pontes e vias de interatividade e mesmo de  reciprocidade,  verdadeiras fontes de informação, conhecimento e formação literária, por extensão enriquecimento intelectual dos leitores. Machado fez das citações e alusões autorais e bibliográficas, meios, instrumentos  e caminhos  para, além de  informar e formar o leitor sobre esses autores e essas obras, ‘atiçá-lo’ e o induzir a encontrar importantes paralelos e significados nos textos que lhe são expostos.]
   □   os 5 autores de maior incidência
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 incid.
 quantit. \
          autores                          
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126 Shakespeare   [ou 174 vezes considerando  as 48 vezes (Malvolio, personagem de “Noite de Reis”) na série “Gazeta de Holanda”]
86  mitologia clássica                
66  Homero                                                                                      
62  Moliére                              
59  V. Hugo                                                                                                   
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e  tem  3 de suas obras entre as 10 mais citadas
86  mitologia clássica                                                                      
63  Bíblia   [---]                                                                                                                        
43  Os Lusíadas   [Camões ]                                   
35  Hamlet  [Shakespeare]                                                        .  
27  Ilíada [Homero]                                                            
20  Romeu e Julieta           
20 Divina Comédia  [Dante]                            
20 Dom Quixote  [Cervantes]              
18 Otelo [Shakespeare]             
17 Odisséia   [Homero] 

Além de compor a (dilapidada, post mortem...) biblioteca pessoal de Machado com Shakespeare  Oeuvres complétes. Tome premier-dixiéme ( Paris, Librairie Hachette, 1867), The handy volume. Vol.. I-XIII.(London, Bradbury, Evans, and Co, 1868), The beauties , by the Late Rev. William Dodd, L.L.D ( London C. Daly, 1839).

A marcante influência de Shakespeare em Machado,a par das diversas incidências quantitativas, revela-se especialmente no próprio tom\teor, essência temática shakespeariana – o hamletino ‘ser ou não ser’ ; o ciúme; até mesmo a insinuação (ou inevitabilidade) do adultério....
Se, p. ex., é comum – a partir do estudo de Helen Caldwell – considerar Otelo a maior,  preponderante, quase exclusiva[sic]  referência e recorrência em Dom Casmurro,  a meu juízo na verdade o âmago referencial  está essencialmente em  Hamlet – vale dizer, no exercício da dúvida (que afinal é o que o ‘ser ou não ser adúltera’ de Capitu,denunciado pelo ciumento Bentinho, ele o narrador, portanto não-confiável, é transmitido ao leitor, Machado instigando-o a praticar esse exercício...) , de resto – assim como em toda obra de Shakespeare --- o elemento capital na ficção machadiana: dúvida que alimentará e gerará a dificuldade da escolha,recorrente e permanente nas personagens de seus contos e romances, mormente na mulher 
 Machado e Shakespeare, ambos tratam dos problemas essenciais do ser humano – daí, a universalidade de suas obras. Em ambos, a exposição da fatuidade das paixões humanas, a precariedade do homem quanto ao conhecimento de si , em ambos o ceticismo,na mesma mesclagem do cômico e do trágico. Em comum, a perplexidade  diante da ambigüidade e da ambivalência do ser humano.                                                                    
Tanto um como no outro,  o tema principal pode ser uma história de amor, mas no fundo as condições sociais – e\ou políticas, ou econômicas – acabam por exercer função e efeito especiais na consecução ou irrealização do idílio. Nos contos e romances machadianos, nas peças shakesperianas embora o tema e a ação seja de um romance, há sempre elementos e vetores de ordem social política ou econômica..
Seus personagens e protagonistas são das classes mais elevadas, a classe trabalhadora e proletariado não compõem seus elencos (e ambos foram criticados por um suposto – e equivocado...- esnobismo).
Ambos viveram em sociedade aristocráticas, oligárquicas, de elites dominadoras, em Machado,  patriarcal e patrimonialista. Ambos criticavam e ironizavam abusos de riqueza e de  poder e privilégios. E eram conscientes das complexas interações sociais desses cenários.
Ambos compreendiam perfeitamente a verdadeira natureza do dinheiro.
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Cervantes, por sua vez, aparece na obra de Machado com incidência quantitativa mais modesta : tem  ele 24 citações e Dom Quixote aparece em 20 menções  – o que não significa necessariamente menos significância qualitativa[Em muitas das alusões e recorrências o que mais importa não é o registro propriamente dito, o informe da obra ou do texto em si, mas a leitura, a interpretação machadianas da obra ou do texto, e  então transmitida ao leitor – quer a nível macro-textual quer a nível micro-textual, quer  de ‘leituras oblíquas’ e  influências ‘subterrâneas’ (aqui tendo em mente  o que o crítico e ensaísta (norte-americano) Harold Bloom cunhou de ‘angústia da influência’, por força da qual  obras e autores embora pouco ou menos citados formal,explicita e quantitativamente exerceram marcante e decisiva importância no escritor que os cita, números importando pouco face às ações intertextuais de formação e influência exercidas por autores e obras ]  :




segunda-feira, 21 de abril de 2014

Tiradentes e Machado de Assis

Neste dia, vale a pena reportar à importante ilação que  o maior nome da literatura brasileira construiu com uma das figuras primordiais da história nacional – ilação retratada  em um significativo conjunto de crônicas  escritas a propósito do  21 de abril.
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Talvez nenhum dos escritores do século XIX admirassem, reverenciassem e cultuassem Tiradentes como Machado de Assis : um vínculo respeitoso ,que remonta à sua postura política durante a década de 1860 , pelo qual Machado investiu Tiradentes com algo semelhante “a aura cristã do martírio e sacrifício” . Só que justamente essa aura,de ‘martírio e sacrifício’, e a loa machadiana ao “homem do povo que sofrera por sua visão de um Brasil  independente”  foram os fatores, ou motes, determinantes ,cruciais para tornar Tiradentes um ‘símbolo republicano’ – suprema ironia : Machado de Assis, simpatizante da monarquia e crítico da República, foi quem no fundo provocou a assunção do inconfidente  a ícone anti-monarquista , dele ‘apropriando-se’ o novo regime e instituindo o dia 21 de abril  como feriado nacional.
 Machado fez de Tiradentes  tema em várias crônicas . A começar pelos ácidos comentários críticos à edificação da estátua de d. Pedro I  no Largo do Rocio (atual praça Tiradentes, no centro da cidade do Rio de Janeiro), que se constituiu em um dos maiores conflitos  políticos em torno da figura do alferes : no lugar onde fora enforcado ‘o mártir’, o governo imperial erguia uma estátua ao neto da rainha que o condenara à morte ; o líder liberal mineiro Teófilo Otoni  chamou a estátua de “mentira de bronze”, e Machado participou intensamente dos protestos.  

Na crônica de  1 abril de 1862, publicada no Diário do Rio de Janeiro, a propósito da festiva  inauguração da estátua, Machado escreveu :
 Está inaugurada a estátua eqüestre do primeiro imperador.
Os que a consideram como saldo de uma dívida nacional nadam hoje em júbilo e satisfação.
Os que, inquirindo a história, negam a esse bronze o caráter de uma legítima memória, filha da vontade nacional e do dever da posteridade, esses reconhecem-se vencidos, e, como o filósofo antigo, querem apanhar mas serem ouvidos.
Já é de mau agouro se à ereção de um monumento que se diz derivar dos desejos unânimes do país precedeu uma discussão renhida, acompanhada de adesões e aplausos.
O historiador futuro que quiser tirar dos debates da imprensa os elementos do seu estudo da história do império, há de vacilar sobre a expressão da memória que hoje domina a praça do Rocio.
A imprensa oficial, que parece haver arrematado para si toda a honestidade política, e que não consente aos cidadãos a discussão de uma obra que se levanta em nome da nação, caluniou a seu modo as intenções da imprensa oposicionista. Mas o país sabe o que valem as arengas pagas das colunas anônimas do Jornal do Comércio.
O que é fato, é que a estátua inaugurou-se, e o bronze lá se acha no Rocio, como uma pirâmide de época civilizada, desafiando a ira dos tempos.
O Rocio vestia anteontem galas e louçanias desusadas.
As ruas por onde passou o préstito estavam ornadas de bandeiras e colchas, e juncadas de folhas odoríferas, segundo as exigências oficiais.
Mas sabe o leitor quem teve grande influência na festa de anteontem? O adjetivo. Não ria, leitor, o adjetivo é uma grande força e um grande elemento . (......)
Foi o adjetivo quem fez as despesas das arengas escritas anteriormente em defesa da estátua.(.....)


Três anos depois, a 25 abril 1865, publicou também no Diário do Rio de Janeiro uma crônica que é uma verdadeira ode a Tiradentes , inclusive prenunciando e acabando por vir a formalizar,tempos depois,  a mitificação do inconfidente – logo por Machado – e fomentar, depois de 1889, sua construção como signo da República :
“Os povos devem ter os seus santos. Aquele que os tem merece o respeito da história, e está armado para a batalha do futuro.
Também o Brasil os tem e os venera; mas, para que a gratidão nacional assuma um caráter justo e solene, é preciso que não esqueça uns em proveito de outros; é preciso que todo aquele que tiver direito à santificação da história não se perca nas sombras da memória do povo.
É uma grande data 7 de setembro; a nação entusiasma-se com razão quando chega êsse aniversário da nossa independência. Mas a justiça e a gratidão pedem que, ao lado do dia 7 de setembro, se venere o dia 21 de abril. E quem se lembra do dia 21 de abril? Qual é a cerimônia, a manifestação pública?
Entretanto, foi nesse dia que, por sentença acordada entre os da alçada, o carrasco enforcou no Rocio, junto à rua dos Ciganos, o patriota Joaquim José da Silva Xavier, alcunhado o Tiradentes.
A sentença que o condenou dizia que, uma vez enforcado, lhe fosse cortada a cabeça e levada a Vila Rica, onde seria pregada em um poste alto, até que o tempo a consumisse; e que o corpo, dividido em quatro pedaços, fosse pregado em postes altos, pelo caminho de Minas.
Xavier foi declarado infame, e infames os seus netos; os seus bens (pelo sistema de latrocínio legal do antigo regime) passaram ao fisco e à câmara real.
A casa em que morava foi arrasada e salgada.
Ora, o crime de Tiradentes foi simplesmente o crime de Pedro I e José Bonifácio. Ele apenas queria apressar o relógio do tempo; queria que o século XVIII, data de tantas liberdades, não caísse nos abismos do nada, sem deixar de pé a liberdade brasileira.
O desígnio era filho de alma patriótica; mas Tiradentes pagou caro a sua generosa sofreguidão. A idéia que devia robustecer e enflorar daí a trinta anos, não estava ainda de vez; a metrópole venceu a colônia; Tiradentes expirou pelo baraço da tirania.
Entre os vencidos de 1792, e os vencedores de 1822, não há senão a diferença dos resultados. Mas o livro de uma nação não é o livro de um merceeiro; ela não deve contar só com os resultados práticos, os ganhos positivos; a idéia, vencida ou triunfante, cinge de uma auréola a cabeça em que ardeu. A justiça real podia lavrar essa sentença digna dos tempos sombrios de Tibério; a justiça nacional, o povo de 7 de setembro, devia resgatar a memória dos mártires e colocá-los no panteon dos heróis.
No sentido desta reparação falou um dos nossos ilustrados colegas, nestas mesmas colunas, há quatro anos. As palavras dele foram lidas e não atendidas; não ousamos esperar outra sorte às nossas palavras.
Entretanto, consignamos o fato: o dia 21 de abril passa despercebido para os brasileiros. Nem uma pedra, nem um hino, recordam a lutuosa tragédia do Rodo. A última brisa que beijou os cabelos de Xavier levou consigo a lembrança de tamanha imolação.
Pois bem, os brasileiros devem atender que este esquecimento é uma injustiça e uma ingratidão. Os deuses podem aprazer-se com as causas vencedoras: aos olhos do povo a vitória não deve ser o criterium da homenagem.
É certo que a geração atual tem uma desculpa na ausência da tradição; a geração passada legou-lhe o esquecimento dos mártires de 1792. Mas por que não resgata o êrro de tantos anos? Por que não faz datar de si o exemplo às gerações futuras?
Falando assim, não nos dirigimos ao povo, que carece de iniciativa.
Tampouco alimentamos a idéia de uma dissensão política; conservadores ou liberais, todos são filhos da terra que Tiradentes queria tornar independente. Todavia, há razão para perguntar ao partido liberal, ao partido dos impulsos generosos, se não era uma bela ação, tomar ele a iniciativa de uma reparação semelhante; em vez de preocupar-se com as questões de subdelegados de paróquia e de influências de campanário.
Em desespero de causa, não hesitamos em volver os olhos para o príncipe que ocupa o trono brasileiro.
Os aduladores hão de ter-lhe lembrado que Tiradentes queria a república; mas o imperador é um homem ilustrado, e há de ver como se distancia dos aduladores o heróico alferes de Minas. Se os ânimos recuam diante de uma idéia que julgam ofensiva à monarquia, cabe ao príncipe sufocar os escrúpulos, tomando êle próprio a iniciativa de um ato que seria uma das mais belas páginas do seu reinado. Um príncipe esclarecido e patriota não podia fazer uma ação mais nobre, nem dar uma lição mais severa.
Uma cerimônia anual, com a presença do chefe da nação, com assistência do povo e dos funcionários do Estado, - eis uma coisa simples de fazer-se, e necessária para desarmar a justiça da história.
Não sabemos até que ponto devemos confiar nesta esperança; mas, ao menos, deixamos consignada a idéia.
Morro pela liberdade! disse Tiradentes do alto da forca: estas palavras, se o Brasil não reparar a falta de tantos anos, serão um açoite inexorável para os filhos do Império.(......)

Em 1892, a propósito do centenário de morte de Tiradentes, Machado fez questão de marcar , o  início da importante série “A Semana”, publicadas na Gazeta de Notícias  de 1892 a 1900, escrevendo  em tom vibrante,pungente e patriótico no dia 24 abril  :
“(......)
Para não ir mais longe, Tiradentes. Aqui está um exemplo. Tivemos esta semana o centenário do grande mártir. A ,prisão do heróico alferes é das que devem ser comemoradas por todos os filhos deste país, se há nele patriotismo, ou se esse patriotismo é outra cousa mais que um simples motivo de palavras grossas e rotundas. A capital portou-se bem. Dos Estados estão vindo boas notícias. O instinto popular, de acordo com o exame da razão, fez da figura do alferes Xavier o principal dos Inconfidentes, e colocou os seus parceiros a meia ração de glória. Merecem, decerto, a nossa estima aqueles outros; eram patriotas. Mas o que se ofereceu a carregar com os pecados de Israel, o que chorou de alegria quando viu comutada a pena de morte dos seus companheiros, pena que só ia ser executada nêle, o enforcado, o esquartejado, o decapitado, esse tem de receber o prêmio na proporção do martírio, e ganhar por todos, visto que pagou por todos..
Um dos oradores do dia 21 observou que a Inconfidência tem vencido, os cargos iam. para os outros conjurados, não para o alferes.. Pois não é muito que, não tendo vencido, a história lhe dê a principal cadeira. A distribuição é justa. Os outros têm ainda um belo papel; formam, em torno de Tiradentes, um coro igual ao das Oceânides diante de Prometeu encadeado. Relede Ésquilo, amigo leitor. Escutai a linguagem compassiva das ninfas, escutai os gritos terríveis, quando o grande titão é envolvido na conflagração geral das coisas. Mas, principalmente ouvi as palavras de Prometeu narrando  os seus crimes às ninfas amadas : Dei o fogo aos homens; esse mestre lhes ensinará todas as artes". Foi o que nos fez  Tiradentes. .
Entretanto, o alferes Joaquim José tem ainda contra si uma cousa, a alcunha. Há pessoas que o amam, que o admiram, patrióticas e humanas, mas que não podem tolerar esse nome de Tiradentes. Certamente que o tempo trará a familiaridade do nome e a harmonia das sílabas; imaginemos, porém, que o alferes tem podido galgar pela imaginação um século e despachar-se cirurgião - dentista. Era o mesmo· herói, e o ofício era o mesmo; mas traria outra dignidade. Podia ser até que, com o tempo, viesse a perder a segunda parte, dentista, e quedar-se apenas cirurgião.(....)

Um mês depois, Machado torna a referir-se ao alferes ,  utilizando-se do tom mais irônico que sua contumaz verve satírica poderia conceber. Na crônica de 22 maio, estampada no mesmo jornal, o sarcasmo machadiano chega a criar uma fantasia – cheia de significados -- ao construir impagável narrativa, exemplar insofismável do alegórico,  acerca de um embuste imaginário :
“Este Tiradentes, se não toma cuidado emr si, acaba inimigo público. Pessoa, cuje nome ignoro, escreveu esta semana algumas linhas com o fim de retificar a opinião que vingou, durante um longo século, acerca do grande mártir da Inconfidência. "Parece (diz o artigo no fim) parece injustiça dar-se tanta importância a Tiradentes, porque morreu logo, e não prestar a menor consideração aos que morreram de moléstias e misérias na costa d'África." E logo em seguida chega a esta conclusão: "Não será possível imaginar que, se não fosse a indiscrição de Tiradentes, que causou o seu suplício, e o dos outros, que o empregaram, teria realidade o projeto ?"
Daqui a espião de polícia é um passo. Com outro passo chega-se à prova de que  ele nem mesmo morreu; o vice-rei mandou enforcar um furriel muito parecido com o alferes, e Tiradentes viveu até 1818 de uma pensão que lhe dava D. João VI. Morreu de um antraz, na antiga rua dos Latoeiros, entre as do Ouvidor e do Rosário, em uma loja de barbeiro, dentista e sangrador, que abriu em 1810, a conselho do próprio D. João, ainda príncipe regente, o qual lhe ·se (formais palavras):
- Xavier, já que não podes ser alferes, ,ma por ofício o que fazias antes por curioso ; vou mandar dar-te umas casas da rua ,os Latoeiros ...
- Oh ! meu senhor I
- Mas não digas quem és. Muda de nome, Xavier; chama-te Barbosa. Compreendes, não ? O meu fim é criar a lenda que tu é que foste o mártir e o herói da  Inconfidência, e diminuir assim a glória de João Alves Maciel.
- Príncipe sereníssimo, não há dúvida que esse é que foi o chefe da detestável conjuração.
- Bem sei, Barbosa, mas é do meu real agrado passá-lo ao segundo plano, para fazer crer que, apesar dos serviços que prestou, das qualidades que tinha e das cartas de Jefferson, pouco valeu, e que tu é que vales tudo. É um plano maquiavélico, para desmoralizar a conjuração. Compreendes agora ?
- Tudo, meu senhor.
- Assim é bem possível que, se algum dia, quiserem levantar um monumento à Inconfidência, vão buscar por símbolo o mártir, dando assim excessiva importância ao alferes indiscreto, que pôs tudo de pernas para o ar, e a pretexto de haver morrido logo. Não abanes a cabeça; tu não conheces os homens. Adeus; passa pela ucharia, que te dêem um caldo de vaca, e pede por Sua Real Majestade e por mim nas tuas orações, Consinto que também rezes pelo furriel Como se chamava ? Esquece-me sempre o nome.
- Marcolino.
- Reza pelo Marcolino.
- Ah! Senhor, os meus cruéis remorsos nunca terão fim!
- Barbosa, têm sempre fim os remorso! de um leal vassalo!
 E assim ficará retificada a história, antes de 1904 ou 1905, Tiradentes será apeadodo pedestal que lhe deu um sentimentalismo que se .lembra de glorificar um só porque morreu logo, como se não morresse sempre antes de outros, e demais, enforcado, que é morte Quanto ao esquartejamento e exposição da cabeça, está provado empírica cientificamente que cadáver não padece, e tanto faz cortar-lhe as pernas como dar-lhe calças. Mas ainda restará alguma coisa ao alferes ; pode-se-lhe expedir a patente de capitão honorário. Se está no céu, e se os mártires formam lá em cima, pode comandar uma companhia. Antes isso que nada. (.....)

E um ano depois, a 23 abril 1893,  menciona Tiradentes e sua coragem e disposição para sacrificar a vida –  ainda que graciosa e bem-humoradamente :
“(....)
 Para mistério, mistério e meio. Saí dali, corri à casa de um armeiro, onde comprei algumas espingardas e bastante cartuchame. Além disso, com o pretexto de saudar o dia 21 de abril, alcancei por empréstimo duas peças de artilharia. Assim armado, recolhi-me a 1 casa, jantei, digeri, e meti-me na cama. Naturalmente não dormi; mas também não vi a aurora, nem o sol de quinta-feira. Portas e janelas fechadas. Nenhum rumor em casa, comidas frias para não fazer fogo, que denunciasse pelo fumo a presença de refugiados. Ensinei à família a senha monástica; andávamos calados, interrompendo o silêncio de quando em quando para dizermos uns aos outros que era preciso morrer. Assim se passou a quinta-feira.
Na sexta-feira, pelas seis horas da manhã, ouvi tiros de artilharia. Ou é a salva de Tiradentes, disse à família, ou é a revolução que venceu. Saí à rua; era a salva. Perguntei pelos mortos. Que mortos ? Pelos acontecimentos. Que acontecimentos ? Nada houvera; toda a cidade vivera em paz. Assim se desvaneceram os sustos, filhos de boatos, filhos da imaginação. Assim se desvaneçam todos os demais ovos do marido de La Fontaine.
Só um fato se havia dado, como disse, o do coreto. Fui à praça ver os destroços, mas já não vi nada; achei a estátua e curiosos. Desandei, atravessei o largo de S. Francisco e desci pela rua do Ouvidor, ao encontro do préstito de Tiradentes. Soube que já não havia préstito. Era pena; esta cidade tem, para Tiradentes, não só a dívida geral da glorificação, como precursor da independência e mártir da liberdade, mas ainda a dívida  particular do resgate. Ela festejou com pompa a execução do infeliz patriota, no dia 21 de abril de 1792, vestindo-se de galas e ouvindo cantar um Te-Deum.
Espiando para casa , lembrei-me que esse dia 21 era ainda aniversário de outra tentativa política. O povo desta cidade e os eleitores convocados revolucionariamente pelo juiz da comarca, reuniram-se na praça do Comércio e pediram ao rei a constituição espanhola, interinamente. A constituição foi dada na mesma noite, contra a vontade de algumas pessoas, e retirada no dia seguinte, depois de alguns lances próprios de tais crises, não por ser constituição, - visto que, dois anos depois, tínhamos outra -- mas naturalmente por ser espanhola. De Espanha só mulheres, guitarras e pintores.(......)
As referências e menções a Tiradentes – como de resto os comentários e alusões feitas a diversas personalidades históricas, assim como a cobertura dos fatos políticos de sua época – constituem provas e exemplos eloqüentes do quanto Machado de Assis participava ativamente da história (política,institucional, econômica, social) e em nada – ao contrário da equivocada interpretação, que exige de uma vez por todas sua revisão – era alheio às questões de seu tempo.
Certamente pelo uso do subterfúgio, da dissimulação, da sutileza – e do disfarce e do enigma—Machado de Assis recebeu, indevidamente, a pecha de “despolitizado”, “alienado”, “alheio às questões políticas e sociais de seu tempo”.
Ledo e puro engano. Machado de Assis foi um crítico ‘avassalador’ da sociedade e das instituições brasileiras, e escreveu – ou a elas se referiu -- em crônicas e artigos, mesmo em  contos e romances e até na poesia. , sobre política (muito) [e,para surpresa de alguns, sobre economia (em menor monta)]. Machado de Assis tinha opiniões políticas — era um monarquista liberal, não apoiava a República, repudiava Floriano Peixoto (que ,apoiado em golpe de Estado em 1891, governava com poderes autoritários, levando o País à ditadura, à censura e à guerra civil) —  e por meio de sua obra é possível observar a política brasileira de sua época através do olhar literário. Raymundo Faoro (em A pirâmide e o trapézio ) sentenciou que pode-se vislumbrar toda a sociedade brasileira do século XIX na obra  de Machado : tanto na não-ficção quanto na ficção, arrancou da História a própria substância de suas narrativas e textos , utilizando uma série de categorias políticas - escravidão, liberdade, golpe de Estado, censura ,aparelho policial, autocracia absolutista,totalitarismo, etc – na elaboração,em sua  escritura literária, de uma  crítica da ideologia brasileira e de uma teoria política avançada,que no campo dos estudos literários não foi adequadamente percebida pelos especialistas.
As crônicas e artigos tratando de política são justamente aquelas que registram opiniões nunca expressadas por Machado com tanta clareza e coerência.

terça-feira, 1 de abril de 2014

125 anos do golpe militar

neste 1o. de abril em que se registram os 50 anos do golpe militar de 1964 [ não se iludam quanto à data exata : o 31 de março foi inventado pelos golpistas para fugir ao 'dia da mentira', 'dia do engodo' ] neste 10. de abril, dizia, vale reportar ao primeiro golpe militar anti-institucional imposto ao país -- no qual, ao contrário de 1964,quando postaram-se, e durante os 21 anos da ditadura, contrários, opositores, até mesmo militantes,  os intelectuais e literatos oitocentistas de um modo geral puseram de imediato em franco apoio, mas logo logo desiludiram-se.enquanto isso,  o povo "bestializado", cf. José Murilo de Carvalho, inerte e amorfo, indiferente -- ao passo que no segundo golpe militar parte da população, representada pela classe média, ilusoriamente aplaudiu e saiu às ruas...
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Os literatos e o golpe de 1889

Embora não tenha produzido correntes ideológicas próprias ou novas concepções estéticas, a geração de intelectuais, solidamente arraigados nas teorias cientificistas de 1870, e todo o espírito progressista da época pareciam estar com a República, apoiada pela maçonaria, pelo positivismo e pelas correntes que se julgavam “desassombradas de preconceitos”, as idéias circulando mais livremente num ambiente que Evaristo de Moraes  qualificou de “porre ideológico” , um verdadeiro  mosaico no qual era predominante o liberalismo,mas que abrigava  alguma voga de anarquismo e simpatias explícitas ao socialismo. Sob os  princípios genéricos do liberalismo, o grupo intelectual definira a tarefa que lhes cabia ; contribuir e propugnar por uma ampla, profunda ação conjunta  para construir a nação e remodelar e fortalecer  o Estado.
Já no 15 de novembro de 1889  registraram sua total adesão : numeroso grupo de republicanos,junto com gente da rua, tendo à frente José do Patrocínio,Aníbal Falcão,  João Clapp,Campos da Paz, Olavo Bilac, Luis Murat e Pardal Mallet - estes três pela primeira vez movidos à ação política concreta-- dirigiu-se à sede da Câmara, aos gritos de viva à República, e redigiram moção de apoio aos chefes da insurreição militar nestes termos :
           “Os abaixo assinados,órgãos espontâneos do povo do Rio de Janeiro, representam o governo provisório,instituído após gloriosa revolução que ipso facto extinguiu a monarquia no Brasil,a necessidade urgente da proclamação da República.
             Excelentíssimos srs. representantes supremos das classes militares do Brasil, marechal Deodoro da Fonseca,chefe de divisão Wandenkolk e tenente-coronel dr. Benjamin Constant.
            O povo do Rio de Janeiro, reunido em massa no edifício da Câmara Municipal, tem a honra de comunicar-vos que, por meio de diversos órgãos espontaneamente surgidos e pelo seu representante legal, proclamou  como nova forma de governo nacional a República.
            Esperam os abaixo assinados,representantes do povo do Rio de Janeiro, que o patriótico governo provisório sancione o ato pelo qual,instituindo a República, se pretende satisfazer a íntima aspiração do povo brasileiro. Viva a República Brasileira ! Vivam o Exército e a Armada nacionais ! Viva o povo do Brasil !
O entusiasmo adesista dos intelectuais era generalizado; em outro manifesto, dirigido ao Governo Provisório instalado a 16 de novembro, assinado por alguns homens de letras em 22 de novembro :
          “O povo, e quando dizemos povo referimo-nos àquela grande parte da nação que os aristocratas de todos os tempos chamaram desdenhosamente o terceiro e quarto estado, donde, reparai bem, em sua maioria saiu sempre o nosso glorioso Exército; os homens de letras, e quando dizemos os homens de letras referimo-nos a todos aqueles que tomando a si os encargos intelectuais da pátria foram, no curso de quatro séculos, os fatores  mais enérgicos e mais desinteressados de nosso progresso; plebe e pensadores, sempre estas duas forças caminharam aqui unidas !... Agora mesmo no fato extraordinário que é o espanto da Europa e o júbilo da América na proclamação da República,as duas grandes forças lá estão ungidas uma a outra... A era das grandes lutas da política responsável abriu-se definitivamente para os brasileiros... A pátria abriu as largas asas em direitura à região constelada do progresso; a literatura vai desprender também o vôo para acompanhá-la de perto. Ao futuro ! ao futuro,modeladores de povos,construtores de nações !
No clamor pela ampliação da atuação do Estado sobre a sociedade aliavam-se a homens públicos, políticos, jornalistas, até mesmo cafeicultores e industriais ,e a esse grupo juntar-se-ia  os grupos militares defensores e sequiosos de maior participação dos militares na política—  o que mais tarde não causaria surpresas quando do progressivo e acentuado  fortalecimento dos governos republicanos a partir de Floriano Peixoto.
As reformas que preconizavam, no entanto, perderam-se no processo político republicano. Na consolidação do novo regime ,dando-se por meio de um processo caótico e dramático, malograram-se seus esforços cientificistas ,reformadores, inovadores na criação daquele ‘saber sobre o brasil’. 
Cedo, muito cedo, já nos primeiros anos do século XX desiludiam-se  : “Está tudo mudado: Abolição, República... Como isso mudou ! Então, de uns tempos para cá parece que essa gente está doida”, vaticina Isaias Caminha , sob a pena de  Lima Barreto. José Veríssimo, em “Vida literária” (revista Kosmos, n. 7,1904) , descreve : “Todos se presumiam e diziam republicanos,na crença ingênua de que a República, para eles palavra mágica que bastava à solução de problemas de cuja dificuldade e complexidade não desconfiavam sequer, não fosse na prática perfeitamente compatível com todos os males da organização social, cuja injustiça os revoltava”. Ainda em outubro de 1890, antes do primeiro aniversário do 15 de novembro, desencantava-se Silva Jardim, lamentando em carta a Rangel Pestana : “Comunico-lhe que parto para a Europa, a demorar-me o tempo preciso a que esta País atravesse o período revolucionário de ditadura tirânica e de anarquia...” . “Esta não é a República de meus sonhos”. lamentou-se Lopes Trovão, um dos próceres do movimento republicano. “Foi para isso então que fizeram a República ?”, protestou Farias Brito.
 Difícil de manter uma convivência pacífica entre a República política e a ‘Republica das letras’, agravado pela crescente insatisfação popular com o novo regime, exposta  em agitações de rua,  episódios violentos, revoltas e movimentos de protesto – e mais ainda com os novos costumes e práticas de desenfreada especulação financeira, a busca  de enriquecimento a qualquer custo,o advento de um capitalismo predatório levando ao encilhamento, a escandalizar Taunay que via “uma degradação da alma nacional  e a decepcionar republicanos ardorosos como Raul Pompéia (“A república discute-se consubstanciada no Banco da República”).
No campo político, até que mantiveram-se passivos diante da “ditadura tirânica” e aceitaram as coligações de Deodoro da Fonseca com as forças mais conservadoras  do Brasil agrário, mas as esperanças esfacelaram-se diante da índole e prática repressoras do governo Floriano Peixoto , quando se deu um cisma profundo entre os literatos e alguns dos antigos entusiastas da República tiveram de fugir do Rio de Janeiro para evitar a prisão, como Olavo Bilac e Guimarães Passos. Passado o momento inicial de esperança, desfeito  o caminho almejado da democratização do País prometida em comícios, conferências públicas,na imprensa radical, consolidada a vitória da ideologia reforçadora do poder oligárquico, derrotados,desapontaram-se as elites, desapontaram-se os trabalhadores e o povo, desapontaram-se os  intelectuais , que desistiram da política militante e se concentraram na literatura.