sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014
três cariocas [2 da gema \ 1 muito especial] e o Carnaval
"é carnaval...
deixa o barco correr... seja vc. quem for,seja o que deus quiser"
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machado de assis e o carnaval
Bons Dias !
Ei-lo que chega... Carnaval à
porta!... Diabo! aí vão palavras que dão idéia de um começo de recitativo ao piano;
mas outras posteriores mostram claramente que estou falando em prosa; e se
prosa quer dizer falta de dinheiro (em cartaginês, está claro) então é que
falei como um Cícero.
Carnaval à porta. Já lhe ouço os
guizos e tambores. Aí vêm os carros das idéias... Felizes idéias, que durante três
dias andais de Carro! No resto do ano ides a pé, ao sol e à chuva, ou ficais no
tinteiro, que é ainda o melhor dos abrigos. Mas lá chegam os três dias, quero
dizer os dois, porque o de meio não
conta; lá vêm, e agora e a vez de alugar a berlinda, sair e passear.
Nem isso, ai de mim, amigas, nem
esse gozo particular, único cronológico, marcado, combinado e acertado, me é
dado saborear este ano. Não falo por causa da febre amarela; essa vai baixando.
As outras febres são apenas companheiras. . . Não; não é essa a causa.
Talvez não saibam que eu tinha
uma idéia e um plano. A idéia era uma cabeça de Boulanger[1],
metade coroada de louros, metade forrada de lama. O plano era metê-la em um
carro, e andar. E vede bem, vós que sois idéias, vede se o plano desta idéia
era mau. Os que esperam do general alguma coisa, deviam aplaudir; os que não
esperam nada, deviam patear; mas o provável é que aplaudissem todos, unicamente
por este fato: porque era uma idéia.
Mas a falta de dinheiro (prosa,
em língua púnica) não me permite pôr esta idéia na rua. Sem dinheiro, sem ânimo
de o pedir a alguém, e, com certeza, sem
ânimo de o pagar, estou reduzido ao papel de espectador.
Vou para a turbamulta das ruas e
das janelas; perco-me no mar dos incógnitos.
Já alguém me aconselhou que fosse
vestido de tabelião. Redargüi que tabelião não traz idéia; e depois, não há
diferença sensível entre o tabelião e o resto do universo. Disseram-me que,
tanto há diferença, que chega a havê-la entre um tabelião e outro tabelião.
- Não leu o caso do tabelião que
foi agora assassinado, não sei em que vila do interior? Foi assassinado diante
de cinqüenta pessoas, de dia e na rua, sem perturbação da ordem pública. Veja
se há de nunca acontecer coisa igual ao Cantanheda...
-Mas que é que fez o tabelião
assassinado?
-É o que a notícia não diz, nem
importa saber. Fez ou não fez aquela escritura. Casou com a sobrinha de um dissidente
político. Chamou nariz de César à alta de nariz de alguma influência local. É a
diferença dos tabeliães da roça e da cidade. Você passa pela rua do Rosário, e
contempla a gravidade de todos os notários daqui. Cada um à sua mesa, alguns de
óculos, as pessoas entrando as cadeiras rolando, as escrituras começando. ..
Não falam de política; não sabem nunca da queda dos ministérios, senão à tarde,
nos bondes e ouvem os partidários como os outorgantes, sem paixão, nem por um,
nem por outro. Não é assim na roça.Vista-se você de tabelião da roça, com um
tiro de garrucha varando-lhe as costelas.
-Mas como hei de significar o
tiro?
-Isto agora é que é idéia;
procure uma idéia. Há de haver uma idéia qualquer que significa um tiro. Leve à
orelha uma pena, na mão uma escritura para mostrar que é tabelião; mas como é
tabelião político, tem de exprimir a sua opinião política. E outra idéia
Procure duas idéias, a da opinião e a do tiro.Fiquei alvoroçado, o plano era
melhor que o outro, mas esbarrava sempre na falta de dinheiro para a berlinda,
e agora no tempo. para arranjar as idéias. Estava nisto, quando o meu
interlocutor me disse que ainda havia idéia melhor.
-Melhor?
-Vai ver: comemorar a tomada da
Bastilha, antes de 14 de julho.
-Trivial.
-Vai ver se é trivial. Não se
trata de reproduzir a Bastilha, o povo parisiense e o resto, não senhor.
Trata-se de copiar São Fidélis.
- Copiar São Fidélis?
- O povo de São Fidélis tomou
agora a cadeia, destruiu-a, sem ficar porta, nem janela, nem preso, e declarou que
não recebe o subdelegado que para lá mandaram. Compreende bem, que esta
reprodução de 1789, em ponto pequeno, cá pelo bairro é uma boa idéia.
-Sim, senhor, é idéia... Mas
então tenho de escolher entre a morte pública do tabelião e a tomada da cadeia!
Se eu empregasse as duas?
-Eram duas idéias.
- Com umas brochadas de anarquia
social, mental, moral, não sei mais qual?
- Isso então é que era um cacho
de idéias... Falta-lhe só a berlinda.
-Falta-me prosa, que é como os
soldados de Aníbal chamavam ao dinheiro. Uba
sacá prosa nanupacatu. Em português: "Falta dinheiro aos heróis de
Cartago para acabar com os romanos." Ao que respondia Aníbal:
Tunga loló. Em português: Boas noites!.
[ crônica , 27.02.1889,Gazeta de Notícias]
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arthur azevedo e o carnaval
O palhaço(história triste para um dia alegre (
Como se explica que o
Saraiva, um homem que tomava a sério as coisas mais cômicas da vida, e, segundo
afirmavam as pessoas que o conheciam mais de perto, nunca ninguém viu rir, como
se explica que o Saraiva, na terça-feira gorda de 1885, saísse de casa depois
de jantar e, sem dizer nada à senhora, comprasse uma vestimenta de palhaço, uma
cabeleira e uma máscara, e com tais objetos se metesse no seu escritório na rua
do Hospício, de onde saiu disfarçado? Ninguém diria que escondido naquela roupa
alegre, muito branca e semeada de rodinhas vermelhas, e por baixo daquela
cabeleira azul, encimada por um chapeuzinho minúsculo e pontiagudo, e por trás
daquela carranca jocosa, que ria de um rir comunicativo, estivesse o grave
comerciante, que parecia haver nascido para vida monástica.
A esposa desse urso, d.
Balbina, era, quando se casou, uma rapariga expansiva e risonha; teve, porém,
que se submeter ao feitio dele: tornou-se tão séria e tão sensaborona como o
Saraiva, e, sozinha em casa, sem filhos, sem amigas, porque o marido não queria
visitas, aborrecia-se muito.
Aborrecia-se tanto que
procurou uma distração, e encontrou-a num belo rapaz, seu vizinho, que de vez
em quando pulava o muro do quintal para fazer-lhe companhia, e consolá-la
daquele silêncio e daquela solidão.
Infelizmente para ela,
outro vizinho, por inveja ou simplesmente por maldade, escreveu uma carta
anônima ao Saraiva, de que ele tinha um sócio de cuja existência não suspeitava
- e ora ai está como se explica que naquela terça-feira gorda, depois de dizer
a d. Balbina que ia para o escritório, onde se demoraria até tarde da noite,
fechando uma correspondência que devia partir no dia seguinte, o austero e
sisudo negociante foi se vestir de palhaço para apanhar a esposa em flagrante
delito.
- Eu saio, os criados
saem, pensou ele; se ela tem realmente um amante, é de supor que aproveite a
ocasião para metê-lo em casa...
Bem pensado, porque um
quarto de hora depois de sair de casa o marido, o amante saltava o muro, e
naquela terça-feira gorda, apesar de ter ficado em casa, d. Balbina divertiu-se
mais que muitos foliões, nas patuscadas dos préstitos e dos bailes.
Havia já duas horas que
o vizinho fazia companhia à solitária vizinha, quando a campainha do portão do
jardim foi violentamente agitada. D. Balbina chegou à janela e avistou um
tilburi, cujo cocheiro, mal que a viu, gritou:
- Mande cá uma pessoa,
minha senhora!
Não havia um criado em casa. D. Balbina
teve que ir pessoalmente abrir o portão.
- Que é? - perguntou
ela.
- Minha senhora, este
palhaço tomou o meu tilburi, e mandou tocar para esta casa; mas em caminho
parece que teve uma apoplexia e morreu!
Efetivamente, o
Saraiva, homem sangüíneo, que não pensou nas conseqüências de pôr aquela
cabeleira e aquela máscara depois de jantar, tinha morrido no tílburi.
Deixo ao leitor o
cuidado de pensar no espanto e na confusão que isso causou, e na tragicômica
anomalia daquele negociante austero, estendido morto num canapé, e amortalhado
em vestes de palhaço.
Só direi que d.
Balbina, passado o período do luto, esposou o solicito vizinho que a consolava
naquele silêncio e naquela solidão.
E até hoje, e lá se vão
mais de vinte anos, ela não atinou com o motivo que levou o seu primeiro marido
a vestir-se de palhaço... para morrer.
Arthur Azevedo
[da coletânea Contos
ligeiros,org. Raymundo Magalhães Junior. Rio de Janeiro: Bloch Editores,
1974]
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lima barreto e o carnaval
O morcego
O carnaval é a expressão da
nossa alegria. O ruído, o barulho, o tantã espancam a tristeza que há nas
nossas almas, atordoam-nos e nos enchem de prazer.
Todos nós vivemos para o carnaval. Criadas, patroas, doutores,
soldados, todos pensamos o ano inteiro na folia carnavalesca.
O zabumba é que nos tira do espírito as graves preocupações da
nossa árdua vida.
O pensamento do sol inclemente só é afastado pelo regougar de um
qualquer “Iaiá me deixe".
Há para esse culto do carnaval sacerdotes abnegados.
O mais espontâneo, o mais desinteressado, o mais lídimo é
certamente o “Morcego".
Durante o ano todo, Morcego é um grave oficial da Diretoria dos
Correios, mas, ao aproximar-se o carnaval, Morcego sai de sua gravidade
burocrática, atira a máscara fora e sai para a rua.
A fantasia é exuberante e vária, e manifesta-se na modinha, no
vestuário, nas bengalas, nos sapatos e nos cintos.
E então ele esquece tudo: a Pátria, a família, a humanidade.
Delicioso esquecimento!... Esquece e vende, dá, prodigaliza alegria durante
dias seguidos.
Nas festas da passagem do ano, o herói foi o Morcego.
Passou dois dias dizendo pilhérias aqui; pagando ali; cantando
acolá, sempre inédito, sempre novo, sem que as suas dependências com o Estado
se manifestassem de qualquer forma.
Ele então não era mais a disciplina, a correção, a lei, o
regulamento; era o coribante [2]inebriado pela alegria de
viver. Evoé, Bacelar!
Essa nossa triste vida, em país tão triste, precisa desses
videntes de satisfação e de prazer; e a irreverência da sua alegria, a energia
e atividade que põem em realizá-la, fazem vibrar as massas panurgianas[3] dos respeitadores dos
preconceitos.
Morcego é uma figura e uma instituição que protesta contra o
formalismo, a convenção e as atitudes graves.
Eu o bendisse, amei-o, lembrando-me das sentenças falsamente
proféticas do sanguinário positivismo do Senhor Teixeira Mendes[4].
A vida não se acabará na caserna positivista enquanto os “morcegos"
tiverem alegria...
[ crônica 30.01.1915 Correio
da Noite ]
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014
cinema e literatura -- a Eduardo Coutinho (1933-2014)
O cinema vai à literatura
(e a literatura se vale do cinema)
o cinema, sempre objeto do foco, das luzes; e como
a literatura,
sempre presente no imaginário e no cotidiano de praticamente todas as pessoas no
mundo.
elementos mais do que suficiente para examinar as
relações entre cinema e literatura
.
Todas as
ocasiões, oportunidades e motivos são
excelentes por permitir uma reflexão
sobre a sempre vigente relação literatura-cinema , com suas interseções,
confluências ...e divergências . Poucas formas artísticas estabelecem entre si
tantas relações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates,
acusações de “infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação,
etc.-- até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos
códigos e modos de funcionamento : narrativa literária e narrativa fílmica
distinguem-se e na maioria dos casos
contrastam- se; são sempre difíceis as transposições de uma para o
outro, pois as características intrínsecas do texto literário --
originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaboramentos -- por princípio não
encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.
A par das diferenças, entre a página e a tela há
laços estreitos -- em forma de ‘mão e
contra-mão’ : a página contém palavras que acionarão os sentidos e se
transformam na mente do leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento
que serão decodificadas pelo expectador
por meio de palavras.Entre a literatura e o cinema, há um parentesco
originário, diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos
processos tecnológicos. Assim, a enorme e expressiva influência da literatura
sobre o cinema tem sua contrapartida, por meio de um ‘cinema interior ou mental’ sobre a
literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao advento dos
artefatos técnicos.
Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da
literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de
início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações
mais ousadas, como a "Avant-Garde" francesa da década de 1920, ou o
surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade
continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.
Daí,
adaptar para o cinema ou para a televisão — meios reconhecidamente ligados à
cultura de massa — obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói,
Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, para
citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional — equivale
a trazer para as mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns,
tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras
literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão -- meios que privilegiam a linha narrativa —
também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em
empreendimentos insatisfatórios.
Não se pode negar que, principalmente em seu período
clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de
legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela,
tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de
escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores
como William Faulkner, Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, James
Age,Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas
histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários
empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já
é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de
alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo
sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me
dizem para fazer; é um emprego, e pronto."
“A literatura e cinema não são tão distantes assevera o
pesquisador e professor do departamento de espanhol e português da University
of California (UCLA), Randal Johnson – com quem tive oportunidade de conversar
quando de sua estadia no Rio de Janeiro, em 2008, convidado pelo Programa de
Pós-graduação da Escola de Comunicação (ECO-Pós) da UFRJ, para ministrar uma
disciplina compactada sobre Cinema, Literatura e TV. Para ele, as relações
entre cinema e literatura não se limitam às adaptações do texto escrito para a
tela, apontando três outros importantes pontos de encontro : o primeiro seria
os filmes feitos sobre escritores – de que gradativamente proliferam vários
exemplos em cinematografias distintas; outro, seria o uso estrutural ou
incorporação de textos literários no discurso cinematográfico – esta
indubitavelmente a ocorrência maior; e também
o encontro da literatura e do cinema poderia se dar através de
referências como alusões literárias nos diálogos e citações implícitas ou
explícitas, visuais, orais ou escritas diretamente na tela – um expediente cada
vez mais recorrente na produção contemporânea. Por outro lado, Johnson critica enfaticamente
a valorização do texto literário sobre o discurso cinematográfico,
sustentando ser muito comum entre os
espectadores uma exigência de fidelidade do filme ao livro. A insistência na
fidelidade da adaptação cinematográfica à obra literária originária,pode
resultar em julgamentos superficiais que freqüentemente valorizam a obra
literária em detrimento da adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes
são julgados criticamente porque, de um modo ou de outro, não são “fieis” à
obra modelo. O conceito, de ‘fidelidade’ assume conotação crucial,tornando-se
na discussão\reflexão do relacionamento entre cinema e literatura, no chamado ‘x da questão’ : tudo, a rigor, gravita
em torno disso.
Às vezes a mais fiel das adaptações faz o pior dos
filmes, porque o material não se presta a uma história filmada e, na forma como
está escrito, não funciona na tela, por mais forte que seja a história no
original.
Esse freqüente discurso da fidelidade baseia-se,a meu
juízo, na crença difundida de que a literatura é superior ao cinema, um
preconceito devido ao fato da literatura ser anterior no tempo ao cinema, o que
pode levar à idéia de que o livro é historicamente mais nobre e o filme
secundário -- além evidentemente do pensamento de que cinema e literatura são
rivais a partir da crença na idéia de que o filme adaptado suga e destrói o que
é essencial no livro.
Na verdade, desde que o cinema é cinema, a literatura tem
sido um de seus pontos de partida – as relações entre o cinema e a literatura
são tão fortes que alguns estudiosos chegam a afirmar a sua existência antes
mesmo do surgimento do cinema. Para isto evocam uma teoria limite, segundo a
qual há uma essência do cinema, de um “pré-cinema” embutido em alguns textos
literários anteriores à forma de expressão cinematográfica, e que teriam como
especificidade o fato de os escritores ordenarem o relato em função da
incidência do olhar do narrador, da sua ‘ocularização’ da cena a narrar. Desse
modo, a narrativa cinematográfica já se encontraria latente em alguns textos
narrativos literários, e a relação logo
passou a trilhar indissolúvel (sic) mão dupla, quando literatos e dramaturgos
começaram a se inspirar no cinema para formar narrativas em prosa e em
poesia. A rigor, as diferenças entre textos literários
e filmes neles apoiados são marcadas por historicidades específicas de cada
linguagem --- isto é, o tempo histórico que cada um retrata (um filme realizado
na década de 2000 abriga um relato literário escrito ou passado em 1890 , ou em
1950, etc ) : e o momento histórico de
cada um é que se constitui faceta que conduz a inevitáveis diferenças. Nenhum
filme ‘repete’ uma obra literária, nenhuma obra literária ‘repete’ um filme,
quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e
circulação de cada um de seus produtos.
Essa intrínseca, dialógica
e dinâmica relação nasce no momento em que o cinema descobre seu potencial
digamos literário, ao absorver o modelo narrativo do romance do século XIX a
subsidiá-lo para melhor contar histórias – malgrado podermos hoje levantar a
reflexão em plena era da imagem digital
em que vivemos : o cinema continuaria
‘preso’ a um modelo narrativo já ,em maior ou menor grau, superado pela própria
literatura? .Se o cinema beneficiou-se do romance do século XIX, por que na era
da imagem digital, quando a capacidade plástica do cinema atinge seu ponto mais
alto, continuam-se a ilustrar romances do século XIX?
Examinado detidamente com isento rigor crítico, no campo
da narrativa, em sua já longa história, o cinema não sofreu muitas variações –
malgrado certas exceções, como experimentos ‘de vanguarda’ – e vem à mente, por
aproximação etimológica, a “Nouvelle Vague” da década de 1960 , que
se propunha a romper com a lógica
linearizante da estética e da narrativa fílmica de até então, inspirada num
congênere da seara literária, o “nouveau
roman”—ambas dialogando entre si pelas respctivas técnicas narrativas, num
movimento de realimentação recíproco entre as duas linguagens.Convém não
esquecer,entretanto, que sob a égide de suas
afinidades com a cultura literária, se o cinema europeu tendia, então, a
se afastar do modelo romanesco tradicional, a indústria cinematográfica
hollywoodiana, voltada para o entretenimento, consolidou-se seguindo padrões já
consagrados da narrativa literária – levando
Jorge Luis Borges a observar que, com os westerns, “Hollywood, por razões comerciais, naturalmente, salvou a
épica, num tempo em que os poetas tinham esquecido que a poesia começou pela
épica”.Tanto uma quanto o outro buscando ultrapassar as limitações formais e “não procurando ordenar o caos”, ao contrário, o caos
tornando-se o princípio da criação. Os cineastas da “Nouvelle Vague”, p. ex., queriam mostrar que nem tudo faz sentido e
que os caminhos são múltiplos; e por fim
aquilo que Jean Cocteau afirmou sobre o cinema pode agora se efetivar,
pois para ele, os filmes só seriam bons quando fossem acessíveis como uma caneta
e um papel.
Contudo, há de se atentar para um outro viés, uma espécie
de contra-mão no processo de interação cinema-literatura, no caso um
contrafluxo mediado, executado,e recentemente cada vez mais incentivado pelo
setor editorial e mercado livreiro – nos quais dá-se o crescente movimento de
publicação de livros motivados... pelo
cinema :roteiros de filmes, diários de filmagens, histórias sobre a elaboração
de filmes(making-of), edição ou
reedição de obras literárias abrigando imagens e outros elementos
iconográficos que remetem para os filmes
realizados a partir da adaptação da obra para
o cinema – uma subversão das relações entre cinema e literatura. De resto, uma tendência à qual avolumam-se questionamentos sobre até que
ponto sinaliza tanto ‘perda de prestígio’ e ‘distorção\vulgarização’
da matéria literária, como sobretudo
‘dessacralização’ da literatura, tênues
que se tornam cada vez mais as fronteiras entre ela e outros tipos de bens
culturais que circulam pela mídia.e no seio de consumo da sociedade.
Das mesmas forma e diapasão e desse processo decorrente,
deflagra-se ao longo da segunda metade do século XX, por parte e ação do
setor editorial ,a contrapartida à incorporação da obra
literária,fosse best seller ou não –
muitas criadas especificamente para se transporem à tela – pelo cinema , com o
relançamento de romances adaptados e especialmente com a publicação de roteiros
.Toda a literatura poderia, então, ser considerada como texto básico para um
filme, e na direção oposta, parece que o cinema vem buscando cada vez mais o
espaço do livro, no que o mercado editorial explora o filão das publicações
derivadas de filmes.
Por
outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas
e roteiristas via de regra imprimem a suas narrativas muito mais o teor, o
timbre, o ritmo, o timing fílmico --
e menos literário. E além disso, mesmo
que sua estória e trama seja de ação,de movimento, costumam lidar
com o onírico, o sonho , e com o
psicológico -- que é, sabemos, elemento
recorrente ao extremo no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de
Bergman a Buñuel, de Resnais a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são
eles antes e acima de tudo pessoas do cinema.
Tudo isso propicia
um exercício de reflexão e indagação: as incursões de cineastas e de
profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas ? O
caso é que um diretor de cinema ou de tv
quando vai à literatura leva com
ele uma bagagem da linguagem -- o ritmo,
o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador --
e assim comete pecados e pecadilhos marcantes . Ao
contrário, um escritor que vai para o cinema -- como roteirista, quase sempre
-- o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são
melhores: caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores
norte-americanos com Hollywood, e ainda de Jean Louis Carrière , Dalton Trumbo
no cinema europeu.
Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões
literárias atuarem numa espécie de
contramão, na via inversa do terreno do relacionamento -- ou do embate --
literatura/cinema ; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias
por cineastas”, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado : no
caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme -- e vale lembrar que para o escritor Autran Dourado “não existe
livro filmado, existe filme baseado
em livro” -- mas escreve um livro com elementos e ‘cacoetes’ de filme. Sai de
seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo instrumental,
na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.
No ‘umbelical’ -- nada dicotômico, portanto --
relacionamento do cinema com a literatura, podem ser extraídos, ou
inferidos\induzidos, alguns elementos que responderiam a Stanley Kubrick --
para quem “tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” -- também provando o inevitável desejo de cineastas e roteiristas, ao
escreverem uma obra literária, replicando a Kubrick, que ‘tudo que pode ser filmado poderia ser escrito’...
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Mauro Rosso
pesquisador, ensaísta,escritor; amante do cinema.
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