segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Os sertões: contemporâneo da posteridade

[seja uma semana depois ,seja sempre sempre, , obrigatório registrar  o 02 dezembro, 1902,] 

“O livro número um do Brasil”- que neste  dezembro  completa 106 anos de publicação -- diz muito da história nacional, e também dos tempos atuais.

                                                                            ______________
“Só as obras bem escritas hão de passar à posteridade" :palavras lapidares  escritas por um naturalista, o conde de Buffon (mais conhecido por uma frase que se tornou famosa :’le style c'est l'homme même’), ao tomar posse na Academia Francesa, em 1753.
Os sertões estão fadados à posteridade. A obra-prima de Euclides da Cunha, completa 106 anos celebrada por muitos, muitissimos motivos __ em especial por sua espantosa  atualidade

Já se falou e escreveu __ vai-se falar e escrever sempre, ao que parece __ de sua linguagem difícil : o que não o impediu de ser o primeiro best-seller da história editorial brasileira , com três edições sucessivas no lançamento, a 2 de dezembro de 1902, (ou seja, cinco anos após o fim de Canudos), pela editora Laemmert, e de ser consensualmente considerado “o livro do Brasil”, “a obra número 1”. É bom lembrar que o “livro vingador” __ assim ele mesmo, Euclides da Cunha, o batizou, ao lançá-lo __ teve sua primeira edição (custeada com recursos próprios do autor) de 2 mil exemplares, rapidamente esgotados.
O que mais dizer de um livro que conta com mais de 30 edições em português, traduzida em 3 idiomas, em mais de 60 países__  em muitos deles  foram feitas traduções sucessivas, em tentativa de contínuo aprimoramento. Mas, por outro lado, é equivocado pensar que sobre Os sertões tudo já foi dito, lido,ouvido e escrito : muito há o que comentar, muito o que refletir, muito até mesmo o que de críticas e ressalvas ouvir e ler, muito o que debater e meditar.

O que fez ,e faz, Os sertões tão célebre? 
A consagração de Euclides e de sua obra se de um lado foi, à primeira vista, um fato relâmpago e inesperado __ um anônimo engenheiro e pouco conhecido jornalista ter se transformado no mais celebrado  escritor do país, na época __ de outro está sedimentado por dois fatores básicos: 1) a aceitação de alguns conceitos –chave de Os sertões relacionava-se com um longo trabalho de imposição de novas idéias e concepções e de novos valores que vinham sendo gestados no país há pelo menos 30 anos __ o cientificismo da ‘geração 1870’; 2) a consagração-relâmpago foi impulsionada por alguns dos críticos literários mais importantes do país, José Verissimo, Araripe Juniorr e depois Silvio Romero__ além de Roquette-Pinto. Todos enalteceram , insistindo em signos de raridade na obra, mostrando o quanto texto, tessitura, forma, estrutura e conteúdo  escapavam do comum, do conhecido.__ e os ensaios críticos que vieram em sequência, ao longo dos anos(e até hoje), enfatizam esse caráter de descobertas de verdades fundamentais para o destino do país, como “a tese dos dois Brasis”, a necessidade de olhar para o interior, para “o Brasil real”. O consenso era de que Os sertões não podia ser comparado a nenhum outro livro: era “uma bíblia permanentemente aberta para interpretações, vindas de diversas áreas : literatura, história, geografia, geologia, política,biografia,matemática, engenharia”.Tanto Verissimo como Araripe sublinhavam a idéia de totalidade encontrada no livro, resultado da soma da arte com a ciência, do épico com o trágico e da emoção com a razão. Euclides produzira uma obra científica, uma obra histórica, mantendo “a continuidade da emoção, sempre crescente, sempre variada, que sopra rija, de princípio a fim, no transcurso de 634 páginas, um livro fascinante, resultado de um conjunto de qualidades artísticas e de preparo científico”. Eis aí uma das vertentes do aspecto ‘ fundador’ da obra, tão mencionado pelos críticos literários ao longo do tempo.

Na consagração de Os sertões, menciona-se o aspecto “fundador” da obra. Em que consiste essa fundação ? por inovar , por renovar, por revolucionar....   por tornar-se enfim um clássico, em meio a  elementos histórico-político-sociológicos e literário-culturais específicos de um período de fortes mudanças no país__ não apenas pela substituição da monarquia pela república, que seria aliás interpretado como um dos motivadores da ‘rebelião de  Canudos’.

Euclides da Cunha, embora Os sertões fosse o seu primeiro livro, já havia atingido um alto estágio de amadurecimento, revelando nessa obra um perfeito domínio da língua e uma clara consciência da sua arte : o crítico  Wilson Martins, por exemplo, reconhece que todos os elementos que formam o estilo euclidiano , e que em qualquer outro escritor” poderiam resultar em desastre”, salvam-se graças ao “poder transfigurador do grande artista da palavra que nele preexistia”. O  crítico e ensaísta Alfredo Bosi sustenta que pode-se ler a obra principal de Euclides aproximando-a da prosa do seu tempo: naturalista no espírito, acadêmica no estilo”.Bosi argumenta ainda que Euclides não se teria tornado um dos nomes centrais da cultura brasileira pelo determinismo estreito das idéias nem pelo rebuscado da linguagem :  Euclides implementou “uma consistência nova em nossas letras: o estatuto da contradição, expressa no livro em forma de opostos inconciliáveis”. Contradição e jogo de opostos, dicotomia tese/antítese que de resto constituem a essência mesma de toda a obra euclidiana __ os ‘contrastes e confrontos’(que deram título, aliás, a uma delas)

A questão de originalidade e autenticidade de Os sertões em última análise nada mais seria do que reflexo da personalidade de Euclides. Se o estilo é natural e original, “ele escreve o que vem de dentro, como sente”, nas palavras de José Verissimo, diferencia-se do escritor guiado apenas por sua subjetividade, pois examina a realidade exterior com as lentes da ciência, procurando o distanciamento __ outra das características apontadas pelos críticos: o ecletismo,o jogo de oposições, de tese e antítese( na melhor acepção da filosofia‘hegeliana’),de ‘contrastes e confrontos’, presente da primeira obra a todos os escritos posteriorede Euclides , em que trata de “assuntos mais opostos, psicologia, socialismo, religião, política, envoltos em problemas de história, pátria, imigração, povoamento, indústria, engenharia”, como chamou a atenção Araripe Junior.

Desse modo, independentemente da perda de sua vitalidade conceitual, a permanência e a atualidade de Os sertões se devem à veemência de sua denúncia, à sua pertinência histórica e à sua excelência literária, o que o sustenta como um marco fundamental da cultura brasileira. Por todas suas implicações, significações, interpretações e nuances, um livro enfim que  veio afirmar novos valores e novos temas de literatura e ciência, obra com a rara qualidade de possibilitar aproximação plural e múltiplas leituras __ entre elas uma reinterpretação do Brasil, renovado com a descoberta dos sertões.

A atualidade e modernidade de Os sertões __ mais: sua ‘eternidade’ __ está em ser entendido como verdadeiro fenômeno cultural, inserido no cenário de constituição e transformação do pensamento social sobre o Brasil. “Euclides da Cunha é o intelectual brasileiro que mais se interessou em conhecer mesmo o Brasil  por dentro”, vaticina o crítico e ensaísta Luiz Costa Lima. ”Os sertões deixou um retrato, um cenário que não pode nunca ser esquecido”, completa.

Euclides da Cunha mostra-se sempre um intelectual preocupado em "pensar" o Brasil dentro de um  momento histórico e  complexo  processo de formação de uma sociedade que fosse capaz de integrar os diversos grupos humanos (litoral e sertão) na definição da identidade nacional. Com toda justiça passou a ser reverenciado como o primeiro autor a escrever um ‘clássico’ no Brasil, uma obra de peso, científica, densa, consistente, vigorosa, que até então só podia ser encontrada em autores e livros estrangeiros. E ter um ‘clássico nacional’ adquiria valor especial : igualava-nos às nações civilizadas do mundo moderno da época.
A criação de Os sertões faz parte do rol dos ‘grandes momentos’ da história do Brasil, e não é por acaso que tenha atravessado um século como obra mater, ‘bíblia da nacionalidade’ e seja fadado à posteridade.

                                                            

No lastro da posteridade, porque Os sertões, simbiose entre jornalismo,literatura,história, ensaismo, ciência, geografia, sociologia, antropologia, geologia, é obra  de múltiplos atributos primordiais: factualidade, perenidade, atualidade.

Factualidade, por ser antes de tudo de uma obra jornalística (mas tão grandiosa que abriga outras características), livro de um jornalista, “o maior feito jornalístico das letras brasileiras ou o maior feito literário do jornalismo brasileiro”, ao retratar um dos episódios mais marcantes da história republicana, registrar o conflito “elite x povo”, “sertão x litoral”, “monarquia x república”, e sobretudo expor condições e situações sociais e culturais de contingentes populacionais,  obra que é “uma epifania de brasilidade, uma fala do Brasil”.

Perenidade, em sendo um cânone literário, por constituir-se uma das obras fundadoras da nacionalidade, “a mais representativa da cultura brasileira de todas as épocas”, capaz de expressar importantes dilemas nacionais que extrapolam a própria narrativa da tragédia de Canudos; obra incluída entre os textos fundadores, fontes  da historiografia literária : Euclides, ao lado de Manuel Bonfim e Gilberto Freyre, como um dos pioneiros grandes intérpretes do Brasil ; um dos textos básicos de “história e construção do pensamento brasileiro” , um acervo formado por obras de Gonçalves de Magalhães, Francisco Varnhagen, Marquês de Maricá, Joaquim Norberto de Souza e Silva , José do Patrocínio. Perenidade, ainda, por ser inovadora de uma literatura-denúncia;

Atualidade  por “chamar a atenção para os excluídos”, denunciar uma questão social, expor mazelas e injustiças, a miséria, a fome, registrar “tendências conflituosas da sociedade brasileira”, enfocar “um Brasil injusto e dividido”, anotar a religiosidade, a crendice,  o misticismo e o  messianismo __ algo sempre latente no cenário político brasileiro (a eterna expectativa pelo ‘pai da Pátria’, pelo ‘salvador da Pátria’).
Sobretudo, a  atualidade da obra deve-se à inquietação que seu caráter de denúncia  provoca, um livro que oferece a oportunidade de ,a partir de Canudos, ter uma visão clara de questões de origens sociais.

Os sertões diz muito de um drama da história brasileira, e também de dramas dos tempos atuais.