sábado, 22 de dezembro de 2012

Natal: 2 contos e um soneto


                                                       
Conto de Natal
                 Arthur Azevedo
                                                                                 I
Das janelas da sala de jantar dos barões de Santa Bárbara, nas Laranjeiras, vi-se o interior da miserável casinha onde morava o Alexandre, pobre –diabo desempregado e enfermo, vivendo de expedientes confessáveis,carregando a vida com um esforço quase sobre-humano.
Fosse ele sozinho e tudo iria pelo melhor ; mas era casado, e lhe nascera um filhinho nas proximidades daquele Natal de 1871. Vir ao mundo uma criança, pelo Natal numa casa sem pão nem conforto, é uma dessas ironias da sorte, que só se tolerara à força de filosofia. O Alexandre era filósofo.
Os barões de Santa Bárbara, que possuíam grandes cabedais,desejavam ter filhos e não os tinham. É sempre assim. A baronesa, das janelas da sala de jantar, olhava com inveja para a mulher do Alexandre. A mulher do Alexandre era pobre,paupérrima, quase indigente, mas tinha o prazer e o orgulho de amamentar um filho !
Na véspera daquele Natal de 1871, os barões de Santa Bárbara,enquanto esperavam o almoço, debruçaram-se à janela e viram no interior de um quarto, na casinha do Alexandre, o recém-nascido deitado numa caixa de batatas, envolvido em trapos.
O barão , que não era insensível às misérias do próximo, encheu-se de piedade,tanto mais que, pela coincidência do dia em que o acaso lhe deparava tão lastimoso espetáculo, parecia-lhe o próprio Menino Jesus que ali estava deitado naqueles trapos, mas um Menino Jesus desprezado pelos Reis Magos e pastores, um Menino Jesus com alfazema,talvez, mas sem incenso nem mirra.
Sabia o barão que a baronesa era muito egoísta : não gostava de praticar o bem nem mesmo por ostentação ; foi, por isso, com certo receio que lhe propôs enviarem algum socorro aos vizinhos pobres ; quanto mais não fosse, umas roupinhas para o bebê.
- Estás doido ! respondeu ela. Nunca mais nos largariam a porta !
- Mas não era preciso que soubessem de onde partia o benefício ; a nossa esmola seria anônima ...
- Qual ! deixa-te dessas idéias ! Eles precisam, é certo, mas há quem precise ainda mais e não seria justo socorrer somente a estes ,quando não podemos acudir aos outros ! Por que esse exclusivismo ? E depois, tu sabes lá que espécie de gente é essa ? Tu sabes se empregaríamos bem a nossa caridade ? Deixa-te dessas idéias, homem de Deus, e vamos almoçar, que a maionese está na mesa.
Comeram ambos o almoço triste dos esposos que pensam diversamente um do outro, sem filhos que atenuem o que possa ter de inconveniente e dolorosa a divergência de sentimentos e impressões.
Inteligente e sensato, o barão não contrariava a baronesa,embora no íntimo lhe detestasse o caráter, e não perdoasse tanto egoísmo numa criatura que lhe trouxera, quando se casou com ele, apenas a roupa do corpo e o próprio corpo. Fazia-lhe todas as vontades.
Foi assim que comprara aquele título ridículo de barão de Santa Bárbara, nome da fazenda onde ele nascera, e era propriedade sua, na Província do Rio.
Todos o tinham em conta de um marido dominado pela mulher, quando o que o dominava era apenas o desejo de viver com ela em aparente harmonia, sem dar aos criados nem aos vizinhos,nem a si mesmo o espetáculo mofino de um casal desunido.
O barão saiu logo depois do almoço e foi a carro para o seu escritório da rua de São Bento.
Como a lembrança do pobre pequenino ,deitado no caixão de batatas, o perseguisse com a insistência de um remorso, ele chamou em particular um empregado de confiança, incumbiu-o de comprar um berço, um enxoval completo de recém-nascido, peças de morim e de chita, latas de leite condensado, vidros de geléia, garrafas de vinho do Porto, etc, e mandar tudo, e mais algum dinheiro,à casa do Alexandre, sem que ninguém soubesse nem suspeitasse a proveniência desse presente.
O empregado cumpriu irrepreensivelmente as ordens do patrão, e foi com uma surpresa, manifestada por frases impertinentes, que a baronesa viu, à tardinha, o caixão de batatas substituído por um berço de vime e os andrajos por boa roupa.
- Vês ? disse ela ao barão. Faríamos asneira se lhes mandássemos alguma coisa: não lhes falta nada !
Pouco tempo depois, a família do Alexandre mudou de residência, e os barões de Santa Bárbara nunca mais tiveram notícia dela.
                                                                                 II

Passaram-se muitos anos ,que correram prósperos para o barão, grande plantador de café ; mas a lei de 13 de Maio surpreendeu-o, como a tantos outros agricultores imprevidentes, e a sua fortuna sofreu grandes reveses.
Depois de proclamada a República, ele atirou-se às especulações da Bolsa ; ficou milionário durante a nevrose do Encilhamento, e não adivinhou a catástrofe. Quando esta veio, encontrou os seus milhões representados em ações de bancos e companhias que não valiam mais nada, e cuja liquidação foi a ruína completa. Nada,absolutamente nada lhe deixaram !...
Nesse doloroso transe, o infeliz titular não ouviu da esposa uma única palavra de consolação ou de esperança que o animasse ; pelo contrário : a baronesa desfazia-se em exprobações e invetivas, e isto concorreu, naturalmente, para desesperá-lo.
O mísero tinha resolvido suicidar-se, quando uma congestão pulmonar o livrou de cometer esse pecado.
Morto o barão, a baronesa, sexagenária e enferma, ficou reduzida à miséria. Os amigos e parentes do marido tinham já se evaporado há muito tempo, e nenhum simpatizava com ela.
A desgraçada ia ser posta na rua por um senhorio implacável, e, para não morrer de fome, estava resolvida a pedir que a mandassem para um asilo, quando foi procurada por um belo rapaz de vinte e cinco anos,pouco mais ou menos, que lhe disse :
- Sra. baronesa, conheço v.ex., estou ao corrente de todas as desgraças que lhe sucederam, venho pedir-lhe que aceite um lugar em nossa casa.
- Mas quem é o senhor ?
- Sou aquela criança que, na véspera do Natal, em 1871, nas Laranjeiras, dormia num caixão de batatas, e a quem v. ex. socorreu,mandando-lhe um berço,roupinhas e leite. Bem vê v.ex. que não faço mais do que pagar uma dívida de gratidão.
- Mas não me lembro... não fui eu que...
- O empregado que se encarregou de fazer com que essa delicada esmola chegasse ao seu destino, não foi tão discreto como lhe recomendaram. Ele disse a meu pai,confidencialmente, que a esmola era do falecido sr.barão, mas minha mãe acudiu logo : - Não ! a lembrança é da baronesa ! Só as mulheres são capazes destes melindres do coração !
A baronesa não confirmou nem desmentiu.
- Há vinte e cinco anos, continuou o rapaz, o nome de v. ex. é repetido naquela casa como o de uma santa ! Venha, sra. baronesa ! Meu paí é morto, mas eu ganho o suficiente para sustentar duas mães...
Uma hora depois, a baronesa de Santa Bárbara estava muito bem alojada na casa dos seus protetores.
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Soneto de Natal
            Machado de Assis

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca.
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"


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Milagre do Natal
                Lima Barreto
O bairro do Andaraí é muito triste e muito úmido. As montanhas que enfeitam a nossa cidade, aí tomam maior altura e ainda conservam a densa vegetação que as devia adornar com mais força em tempos idos. O tom plúmbeo das árvores como que enegrece o horizonte e torna triste o arrabalde.
Nas vertentes dessas mesmas montanhas, quando dão para o mar, este quebra a monotonia
do quadro e o sol se espadana mais livremente, obtendo as cousas humanas, minúsculas e mesquinhas, uma garridice e uma alegria que não estão nelas, mas que sê percebem nelas. As tacanhas casas de Botafogo se nos afigura assim; as bombásticas "vilas" de Copacabana, também; mas, no Andaraí, tudo fica esmagado pela alta montanha e sua sombria vegetação.
Era numa rua desse bairro que morava Feliciano Campossolo Nunes, chefe de secção do Tesouro Nacional, ou antes e melhor: subdiretor. A casa era própria e tinha na cimalha este dístico pretensioso: "Vila Sebastiana". O gosto da fachada, as proporções da casa não precisam ser descritas: todos conhecem um e as outras. Na frente, havia um jardinzinho que se estendia para a esquerda, oitenta centímetros a um metro, além da fachada. Era o vão que correspondia à varanda lateral, quase a correr todo o prédio.
Campossolo era um homem grave, ventrudo, calvo, de mãos polpudas e dedos curtos. Não largava a pasta de marroquim em que trazia para a casa os papéis da repartição com o fito de não lê -los; e também o guarda-chuva de castão de ouro e forro de seda.Pesado e de pernas curtas, era com grande dificuldade que ele vencia os dois degraus dos "Minas Gerais" da Light, atrapalhado com semelhantes cangalhas: a pasta e o guarda chuva de " ouro".
Usava chapéu de coco e cavanhaque.
Morava ali com sua mulher mais a filha solteira e única, a Mariazinha.A mulher, Dona Sebastiana, que batizara a vila e com cujo dinheiro a fizeram, era mais alta do que ele e não tinha nenhum relevo de fisionomia, senão um artificial, um aposto. Consistia num pequeno pince-nez de aros de ouro, preso, por detrás da orelha, com trancelim de seda. Não nascera
com ele, mas era como se tivesse nascido, pois jamais alguém havia visto Dona Sebastiana sem aquele adendo, acavalado no nariz. fosse de dia, fosse de noite. Ela, quando queria olhar alguém ou alguma cousa com jeito e perfeição, erguia bem a cabeça e toda Dona Sebastiana tomava um entono de magistrado severo.
Era baiana, como o marido, e a Única queixa que tinha do Rio cifrava-se em não haver aqui
bons temperos para as moquecas, carurus e outras comidas da Bahia, que ela sabia preparar com perfeição, auxiliada pela preta Inácia, que, com eles. viera do Salvador, quando o marido foi transferido para São Sebastião. Se se oferecia portador, mandava-os buscar; e. quando, aqui chegavam e ela preparava uma boa moqueca, esquecia -se de tudo, até que estará muito longe da sua querida cidade de Tomé de Sousa.
Sua filha, a Mariazinha, não era assim e até se esquecera que por lá nascera: cariocara-se inteiramente. Era uma moça de vinte anos, fina de talhe, poucas carnes, mais alta que o pai,
entestando com a mãe, bonita e vulgar. O seu traço de beleza eram os seus olhos de topázio com estilhas negras. Nela, não havia nem invento, nem novidade como - as outras.
Eram estes os habitantes da "Vila Sebastiana" , além de um molecote que nunca era o mesmo. De dous em dous meses, por isso ou por aquilo, era substituído por outro, mais claro ou mais escuro, conforme a sorte calhava.
Em certos domingos, o Senhor Campossolo convidava alguns dos seus subordinados a irem almoçar ou jantar com eles. Não era um qualquer. Ele os escolhia com acerto e sabedoria. Tinha uma filha solteira e não podia pôr dentro de casa um qualquer, mesmo que fosse empregado de fazenda. Aos que mais constantemente convidava, eram os terceiros escriturários Fortunato Guaicuru e Simplício Fontes, os seus braços direitos na secção. Aquele era bacharel em Direito e espécie de seu secretário e consultor em assuntos difíceis; e o último chefe do protocolo da sua secção, cargo de extrema responsabilidade, para que não houvesse extravio de processos e se acoimasse a sua subdiretoria de relaxada e desidiosa. Eram eles dous os seus mais constantes comensais, nos seus bons domingos de efusões familiares. Demais, ele tinha uma filha a casar e era bom que...
Os senhores devem ter verificado que os pais sempre procuram casar as filhas na classe que
pertencem: os negociantes com negociantes ou caixeiros; os militares com outros militares; os médicos com outros médicos e assim por diante. Não é de estranhar, portanto, que o chefe Campossolo quisesse casar sua filha com um funcionário público que fosse da sua repartição e até da sua própria secção.
Guaicuru era de Mato Grosso. Tinha um tipo acentuadamente índio. Malares salientes, face
curta, mento largo e duro, bigodes de cerdas de javali, testa fugidia e as pernas um tanto arqueadas. Nomeado para a alfândega de Corumbá, transferira-se para a delegacia fiscal de Goiás. Aí, passou três ou quatro anos, formando-se, na respectiva faculdade de Direito, porque não há cidade do Brasil, capital ou não, em que não haja uma. Obtido o título, passou-se para a Casa da Moeda e,desta repartição, para o Tesouro. Nunca se esquecia de trazer o anel de rubi, à mostra. Era um rapaz forte, de ombros largos e direitos; ao contrário de Simplício que era franzino, peito pouco saliente, pálido, com uns doces e grandes olhos negros e de uma timidez de donzela.Era carioca e obtivera o seu lugar direitinho, quase sem pistolão e sem nenhuma intromissão de políticos na sua nomeação.
Mais ilustrado, não direi; mas muito mais instruído que Guaicuru, a audácia deste o superava, não no coração de Mariazinha, mas no interesse que tinha a mãe desta no casamento da filha. Na mesa, todas as atenções tinha Dona Sebastiana pelo hipotético bacharel:
- Porque não advoga? perguntou Dona Sebastiana, rindo, com seu quádruplo olhar altaneiro, da filha ao caboclo que, na sua frente e a seu mando, se sentavam juntos.
- Minha senhora, não tenho tempo...
- Como não tem tempo? O Felicianinho consentiria - não é Felicianinho? Campossolo fazia solenemente :
- Como não, estou sempre disposto a auxiliar a progressividade dos colegas.
Simplício, à esquerda de Dona Sebastiana, olhava distraído para a fruteira e nada dizia. Guaicuru, que não queria dizer que a verdadeira . razão estava em não ser a tal faculdade "reconhecida", negaceava:
- Os colegas podiam reclamar.
Dona Sebastiana acudia com vivacidade :
- Qual o que . O senhor reclamava, Senhor Simplício?
Ao ouvir o seu nome, o pobre rapaz tirava os olhos da fruteira e perguntava com espanto:
- O que, Dona Sebastiana ?
- O senhor reclamaria se Felicianinho consentisse que o Guaicuru saísse, para ir advogar?
- Não.
E voltava a olhar a fruteira, encontrando-se rapidamente com os olhos de topázio de Mariazinha. Campossolo continuava a comer e Dona Sebastiana insistia:
- Eu, se fosse o senhor ia advogar.
- Não posso. Não é só a repartição que me toma o tempo. Trabalho em um livro de grandes proporções.

Todos se espantaram. Mariazinha olhou Guaicuru; Dona Sebastiana levantou mais a cabeça
com pince-nez e tudo; Simplício que, agora, contemplava esse quadro célebre nas salas burguesas,representando uma ave, dependurada pelas pernas e faz pendant com a ceia do Senhor - Simplício,dizia, cravou resolutamente o olhar sobre o colega, e Campossolo perguntou:
- Sobre o que trata?
- Direito administrativo brasileiro.
Campossolo observou:
- Deve ser uma obra de peso.
- Espero.
Simplício continuava espantado, quase estúpido a olhar Guaicuru. Percebendo isto, o matogrossense apressou-se:
- Você vai ver o plano. Quer ouvi-lo ?
Todos, menos Mariazinha, responderam, quase a um tempo só:
- Quero.
O bacharel de Goiás endireitou o busto curto na cadeira e começou:
- Vou entroncar o nosso Direito administrativo no antigo Direito administrativo português.
Há muita gente que pensa que no antigo regime não havia um Direito administrativo. Havia. Vou estudar o mecanismo do Estado nessa época, no que toca a Portugal. V ou ver as funções dos ministros e dos seus subordinados, por intermédio de letra-morta dos alvarás, portarias, cartas régias e mostrarei então como a engrenagem do Estado funcionava; depois, verei como esse curioso Direito público se transformou, ao influxo de concepções liberais; e, como ele transportado para aqui com Dom João VI, se adaptou ao nosso meio, modificando-se aqui ainda, sob o influxo das idéias da Revolução.
Simplício, ouvindo-o falar assim dizia com os seus botões: "Quem teria ensinado isto a ele?"
Guaicuru, porém, continuava:
- Não será uma seca enumeração de datas e de transcrição de alvarás, portarias, etc. Será uma cousa inédita. Será coisa viva.
Por aí, parou e Campossolo com toda a gravidade disse:
- V ai ser uma obra de peso.
- Já tenho editor!
- Quem é? perguntou o Simplício.
- É o Jacinto. Você sabe que vou lá todo o dia, procurar livros a respeito.
- Sei; é a livraria dos advogados, disse Simplício sem querer sorrir.
- Quando pretende publicar a sua obra, doutor? perguntou Dona Sebastiana.
- Queria publicar antes do Natal. porque as promoções serão feitas antes do Natal, mas...
- Então há mesmo promoções antes do Natal, Felicianinho ?
O marido respondeu:
- Creio que sim. O gabinete já pediu as propostas e eu já dei as minhas ao diretor.
- Devias ter-me dito, ralhou-lhe a mulher.
- Essas coisas não se dizem às nossas mulheres; são segredos de Estado, sentenciou Campossolo.
O jantar foi. acabando triste, com essa história de promoções para o Natal.
Dona Sebastiana quis ainda animar a conversa, dirigindo-se ao marido:
- Não queria que me dissesses os nomes, mas pode acontecer que seja o promovido o doutor Fortunato ou... O "Seu" Simplício, e eu estaria prevenida para a uma "festinha".Foi pior. A tristeza tornou-se mais densa e quase calados tomaram café.Levantaram-se todos com o semblante anuviado, exceto a boa Mariazinha, que procurava dar corda à conversa. Na sala de visitas, Simplício ainda pôde olhar mais duas vezes furtivamente os olhos topazinos de Mariazinha, que tinha um sossegado sorriso a banhar-lhe a face toda; e se foi.
O colega Fortunato ficou, mas tudo estava tão morno e triste que, em breve, se foi também
Guaicuru.
No bonde, Simplício pensava unicamente em duas coisas: no Natal próximo e no "Direito"
de Guaicuru. Quando pensava nesta .' perguntava de si para si: "Quem lhe ensinou aquilo tudo?
Guaicuru é absolutamente ignorante" Quando pensava naquilo, implorava: "Ah! Se Nosso Senhor Jesus Cristo quisesse..."
Vieram afinal as promoções. Simplício foi promovido porque era muito mais antigo na classe que Guaicuru. O Ministro não atendera a pistolões nem a títulos de Goiás. Ninguém foi preterido; mas Guaicuru que tinha em gestação a obra de um outro, ficou furioso sem nada dizer.
Dona Sebastiana deu uma consoada à moda do Norte. Na hora da ceia, Guaicuru, como de
hábito, ia sentar-se ao lado de Mariazinha, quando Dona Sebastiana, com pince-nez e cabeça, tudo muito bem erguido, chamou-o:
- Sente-se aqui a meu lado, doutor, aí vai sentar-se o "Seu" Simplício.
Casaram-se dentro de um ano; e, até hoje, depois de um lustro de casados ainda teimam.
Ele diz:
- Foi Nosso Senhor Jesus Cristo que nos casou.
Ela obtempera:
- Foi a promoção.
Fosse uma coisa ou outra, ou ambas, o certo é que se casaram. É um fato. A obra de
Guaicuru, porém, é que até hoje não saiu...
                                                     Careta, 24-12-1921.
[* o último Natal (e dezembro) de Lima : morreria em 1º. nov 1922]

                                                                                                       



quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

réquiem a Niemeyer : AS CIDADES - I

como um réquiem a Oscar Niemeyer
AS CIDADES
                                                                                _____________


Estranhos nas ruas, íntimos na rede

Viver numa cidade é viver numa comunidade de pessoas estranhas umas às outras”,assim vaticina o escritor anglo-americano Jonathan Raban;  andamos e perambulamos -- qual flâneurs  a la Walter Benjamin, João do Rio, Lima Barreto – pelas  ruas  das cidades como estranhos, anônimos no meio de uma multidão de desconhecidos.
No princípio, vivíamos em aldeias. Depois, vivemos em cidades. Hoje, vamos viver  na internet”, sentenciou o presidente do Facebook, Sean Parker. A mídia digital, a internet, as redes sociais constituem atualmente a  verdadeira,real, concreta(sem trocadilho) arquitetura que habitamos, os palcos centrais e,importante notar, os mais transparentes da existência -- e da convivência humana..
Nas ruas vocês\nós estão\estamos sozinho – mas NÃO na mídia digital, nas redes sociais: cada vez mais interligados, interconectados, ‘interdialogantes’ e sobretudo interparticipantes da vida alheia...
                                                                         __________

[em sequência, 3 estudos sobre 3 cidades : "Espelhos: o Rio de Janeiro por  quatro escritores "; "São Paulo,cidade literária"; "Petrópolis,cidade literária"]

réquiem a Niemeyer : AS CIDADES - II



Espelhos : o Rio de Janeiro por quatro escritores
 Um quarteto espetacular de escritores; quatro obras excepcionais, canônicas -- Memórias de um sargento de milícias,, de Manuel Antonio de Almeida; Casa Velha, de Machado de Assis; Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto; A alma encantadora das ruas,, de João do Rio – verdadeiros,exuberantes  retratos,espelhados entre si e com a cidade, do Rio de Janeiro.
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        Caso exemplar de simbioses  –  magníficas criações literárias de grandes escritores, a propiciar estimulantes possibilidades de  formulação de estudos e reflexões sobre    interações entre  as peças . A rigor, mostra muito mais do que o geográfico-urbano-espacial elo comum entre o Rio e notáveis literatos: traz outros elementos de relações, encadeamentos e ilações -- estas tanto de identificação quanto de  contraposição -- entre as quatro obras, seus autores e... seus  personagens.
        Qual  espelhos que ao mesmo tempo em que refletem ‘invertem’ imagens, as obras em tela guardam e mantêm entre si identidades e contraposições, similaridades e contrapontos,intertextualidades e cotejamentos.(teriam os idealizadores deste conjunto inicial da Coleção vislumbrado essas interações de atores e obras, e o concebido  sob esse approach ?....)
         Primeiramente, vale observar que, sob a órbita do cenário carioca da segunda metade do século XIX e duas primeiras décadas do século XX  brasileira, os quatro livros  guardam,entre cada um dos escritores de cada uma das obras, o importante vínculo de encadeamento sequencial de ciclos cruciais da  historiografia literária brasileira , a saber:  Memórias de um sargento de milícias  como exemplar do Romantismo ( abalizadas análises projetem a obra de  Manuel Antonio de Almeida  na verdade como um antecipador do Realismo) ; Casa Velha,  como (especial) representante do Realismo (malgrado,não apenas  Machado de Assis poder ser considerado, e o é,acima de todos os ciclos e rótulos e chancelas, como ainda a interpretação  deflagrada pela crítica e ensaísta Lucia Miguel-Pereira em Machado de Assis: Casa Velha,1944, interpretação equivocada e depois revisada e corrigida, de ter sido a obra escrita muito antes de 1885, quando foi concretamente publicada).; Triste fim de Policarpo Quaresma,romance expoente do Prémodernismo,de que Lima Barreto foi inconteste epígono, de resto ciclo que também abrigou João do Rio e sua ode à "alma encantadora das ruas"-- obra que assume  papel bastante peculiar,qual  uma 'apresentadora' do cenário urbano onde se desenrolam as histórias e tramas narradas  nas  outras três obras.
       A par de ilações concretas de cunho intelectual e literário entre os escritores e as obras em tela,  mencionemos  a existência efetiva de relações de ordem pessoal – amistosas, num caso; de franca antipatia  mútua,em outro : enquanto Manuel Antonio de Almeida e Machado de Assis guardavam excelente relacionamento e até afinidades  afetivas entre si (mas também marcantes ilações literárias, como se verá)– Almeida,.além de ter sido  chefe de Machado na oficina da Imprensa Nacional,iniciando-o na arte e atividade de tipografia,  introduziu-o  na Sociedade Petalógica e no seleto círculo intelectual em torno de Paula Brito e foi seu grande incentivador para o fazer literatura; Machado, inclusive,dedicou a ele o (importantíssimo) artigo “O jornal e o livro”, publicado em janeiro 1859 (ele, com menos de 19 anos e meio) no Correio Mercantil  –  de outro lado, Lima Barreto e João do Rio se antegonizavam, nutriam forte animosidade um pelo outro.E entre Machado e João do Rio deu-se  curiosa episódio : Machado nunca respondeu ao questionário que,em 1899, João lhe submetera  para a coletânea, de entrevistas com diversos escritores, O momento literário, e acabou não aparecendo – não se sabe até hoje porque – na obra, publicada em 1904..
         Em outro viés – aqui de natureza digamos ‘filosófica’ -- em Machado de Assis e Lima Barreto as diferenças e divergências entre ambos escondem proximidades e até mesmo identidades bastante significativas (veiculei  estudo a respeito, exatamente com esse título,  “Diferentes, divergentes, mas próximos muito próximos, no qual promulgo Lima Barreto e Machado de Assis como verdadeiros, natos, ‘parentes literários’. Ainda que bastante diferentes, ambos muito próximos de várias maneiras – essencialmente semelhantes em concepções filosóficas, temas, influências, pontos de vista,mesmo que sob formas,modos e discursos distintos. De modo convergente, mas de forma  divergente, analisaram os cenários políticos, históricos,institucionais,sociais,culturais de suas épocas e a existência do homem --: Machado, privilegiando as nuances, dissecando-o em sua essência,revelando sutilezas, contradições e ambigüidades psicológicas; Lima, sem linhas e focos enviezados, desnudando suas fraquezas, insuficiências, submissões, condições sociais. Se Machado inaugurou o psicologismo na ficção brasileira, Lima introduziu o tema da incomunicabilidade, do isolamento existencial e social.)
       Por outro lado, notáveis – e sem o serem inusitadas ou surpreendentes - são as  intertextualidades, quer de interações quer  de contraposições, explícitas ou=implícitas, entre as quatro obras e os quatro autores. ’Sob um viés, Memórias de um sargento de milícias irradia genericamente para Casa Velha e para Triste fim de Policarpo Quaresma um vetor de estado e posturas de autoritarismo, concreto ou latente: o autoritarismo ditatorial de Vidigal, em Memórias...  é do mesmo naipe do de Floriano,como tratado em Policarpo Quaresma – de que aliás é o personagem principal, sem dúvida – e de outro tom no autoritarismo doméstico,familiar de d. Antonia em Casa Velha.
        Leonardo Filho, Lalau e Policarpo Quaresma, cada um a seus modo, feitio e circunstâncias, são personagens que reagem a pressões, por vezes intoleráveis, de uma sociedade dominadora, patriarcal, ou de um ambiente matriarcal(como em Casa Velha) – de resto, também  o que se dá com os personagens de Lima Barreto, no geral de sua ficção : Leonardo Filho e Policarpo agem, mas sofrem as sanções da sociedade e do sistema político -- para o primeiro,ainda colonial; para o outro, já republicano -- que os sufocam e ferem; Lalau, de um imperial âmbito  familiar,doméstico, e de  esfera social.
Quer em Memórias de um sargento de milícias, em Casa Velha, quer em Triste fim de Policarpo Quaresma, personagens, situações,tramas – e os autores – ‘subjugados’ ao Estado,onipresente, seja “no tempo do rei”, seja ‘sob o manto imperial’(em 1839),seja sob a ‘mão pesada da República’.
        Não chego a dizer e sustentar que Memórias de um sargento de milícias e Manuel Antonio de Almeida sejam a obra e o autor capitais, centrais, deste conjunto, mas podem ser vistos como um pólo gerador de eixos de ilações e recorrências com as demais obras e autores. Antonio de Almeida e sua obra --  emblemática  de uma inflexão temática, tramática e estilística no romantismo literário brasileiro -- ‘interagem’ com Machado de Assis  não só na antecipação do Realismo, mas também, e especificamente,no que Memórias de um sargento de milícias --‘anárquica’, ‘picaresca’(conotação, na verdade, cunhada por  Mario de Andrade , é questionada por Antonio Candido,em seu primoroso ensaio “Dialética da malandragem”, para quem Leonardo  Filho antes de ser um ‘pícaro’ é, sim, o primeiro malandro da literatura brasileira . No entanto, para ‘simplificar’ e evitar estender o que não é propósito deste comentário, aceitemos e adotemos essa  designação mesmo.) -- prenuncia Memórias póstumas de Brás Cubas (1881)– ‘inovadora’, ‘revolucionária’, marco da inflexão machadiana e de rito de passagem para o Realismo literário brasileiro,e da qual – convém notar - Casa Velha(1885),na produção romanesca machadiana,  é seqüente.
        Memórias de um sargento de milícias  contrasta com a ficção brasileira do tempo – como Casa Velha difere, no enfoque e no tom e timbre, da ficção realista de sua época e inclusive, e em especial, das obras romanescas de Machado de Assis a partir da década de 1880 (Memórias póstumas de Brás Cubas; Quincas Borba; Dom Casmurro; Esaú e Jacó; Memorial de Ayres)

“O tempo do rei’, i.e. de d. João VI, em que se dá a história de Memórias de um sargento de milícias,  é citado e adquire significância especial em  Casa Velha, no que determina como fulcro inicial  na dinâmica da trama a intenção do padre-narrador em escrever a história de Pedro I, inspirado  numa Memória de d. João VI,de autoria do pde. Luís Gonçalves dos Santos, o pde.Perereca. Vale dizer, a obra que o cônego em Casa Velha  propõe-se a escrever é,no âmbito ficcional, ‘decorrente’ da vivência no tempo em que decorre Memórias de um sargento de milícias.: nesta, a estrutura da trama, inerente a história política entre 1808 e 1822, faz o  pano de fundo histórico da obra de Manuel Antonio de Almeida  terminar onde começa o da obra de Machado de Assis.
         Mais do que ‘picaresca’[sic] ou outra conotação que se lhe atribua,  Memórias... é antes de tudo, um romance social – como aliás são os de Lima Barreto.  Mas é também uma história do amor de Leonardo Filho por Luisinha – esta, ao contrário, de Lalau, de Casa Velha, e de certo modo de Olga, de Policarpo Quaresma,  é mocinha burguesa, com herança e meneios dissimulados. A obra de Antonio de Almeida também retrata uma família – Leonardo Filho, seu pai e sua mãe, aliás  o núcleo central do elenco de protagonistas, como o são em Casa Velha d. Antonia,Lalau e Félix. Na obra de Machado de Assis há a contraposição ao mundo patriarcal representada pela figura de d. Antonia, e em dada escala por Lalau, não de todo submissa às regras sociais (embora de comportamento dentro da ‘ordem’); em Memórias de um sargento de milícias personalizada essa contraposição,e confrontante com a ordem estabelecida, por Leonardo Filho: ele e Lalau são dotados, cada um per se, de elementos simbólicos, como  personagens –representantes das classes não-dirigentes [e caberia aqui uma especulação- claro que numa escala ‘surreal’ : Lalau  poderia se interessar,e vice-versa, por Leonardo?...]
        Por sua vez, tanto Memórias de um sargento de milícias quanto Triste fim de Policarpo Quaresma, talvez com sinais invertidos, representam metáforas sobre o destino do Brasil  como Nação. A impressão de realidade comunicada pelas obras decorre de uma visão mais profunda, embora instintiva, da função, ou "destino" das pessoas naquelas sociedades;  Manuel Antônio, guardadas as devidas proporções, mantém em  comum com os autores realistas: a capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da sociedade --exatamente como Lima Barreto..
           Ambas as obras e seus protagonistas  como veículos de hilariantes sátiras sócio-políticas, das instituições, Policarpo Quaresma como uma espécie de  Leonardo Filho ao contrário : se aquele  é modelo do patriota, este é o antipatriota. Enquanto Leonardo Filho sofre a repressão de uma sociedade forte,preocupada com a ordem pública,  Policarpo convence-se da necessidade de um governo forte -- o que o leva a apelar ao poder de Floriano Peixoto e alistar-se no exército florianista.
           No geral e em essência, o universo dos personagens da obra de Antonio de Almeida – empregados, subempregados, desempregados, biscateiros; destituídos, marginalizados, etc – é o universo ficcional de toda a obra de Lima Barreto.Os dois autores, ‘contestadores’ da ordem – não apenas numa,digamos, ideologia de suas respectivas tramas e temas ficcionais, mas também  na forma literária: as escrita e linguagem ficcional imprimidas em Memórias.guarda identidades com as escrita,estilo e linguagem literária de Lima Barreto, ambas coloquiais,despojadas,fluentes,lastreadas na oralidade.(“antinefelibatas”, segundo Lima).
          Em Triste fim de Policarpo  Quaresma – como de resto nos demais romances  e novelas barretianos (Recordações do escrivão Isaias Caminha e Morte e vida de M.J. Gonzaga de Sá; em Clara dos Anjos) – há um pathos trágico, da derrota final de Policarpo; em Memórias de um sargento de milícias , ao contrário, dá-se um aparente pathos ‘épico’, de vitória, Leonardo Filho feito por fim sargento de milícias. Se Leonardo Filho é um ‘herói atuante’, picaresco [ sic : conservemos a conotação ‘picaresca’,vá lá...] , ‘thorminiano’ (de Lazarillo de Thormes), Policarpo (bem como Isaias Caminha – e similarmente ao machadiano  ‘homem de espírito’) é um autêntico ‘herói carlyleano’,um ‘herói solitário’, ‘intelectual’ lyleano’– per se  um flâneur. Incorporado de Carlyle (uma das maiores influências intelectuais em Lima),  o flâneur  barretiano – foi Lima  o introdutor desta figura na literatura brasileira – que é um  flâneur dramático,debilitado, andarilho decadente, está no flaneurismo ,de perfil e atuação completamente contrários, de João do Rio, em seus freqüentar e retratar as ruas da cidade.
       Identificação e ‘entrocamento’ entre Lima e João – não obstante as antipatia  e animosidade de um pelo outro no campo pessoal --  que não se dá apenas nesse terreno subjetivo de comportamento social mas também em vívidos aspectos comuns da realidade de origem e de vivência de cada um.
         Ambos  naturais e falecidos no mesmo Rio de Janeiro – João do Rio nascido em 1880, Lima Barreto em 1881(aliás, ano de publicação de Brás Cubas,marco ficcional machadiano); João, morto em 1921, Lima em 1922 : um ano a separá-los em seus nascimentos e mortes – Lima oriundo de família modesta, de funcionário público empregado pela Monarquia, amante de seus ‘adoráveis subúrbios’,rebelde e automarginalizado; João, de família de classe média, abolicionista,positivista, republicana, dândi  integrando-se  gradativamente às altas esferas da sociedade e às  elites ;  os dois vividos na mesma cidade,então em ebulição, pela pretensa modernização, ambos sob a mesma República, João, entusiasta incondicional, Lima, crítico visceral.
          João do Rio, sempre atuando na ‘imprensa burguesa’, em grandes jornais,prestigiado e famoso, foi até mesmo empresário jornalístico;; Lima Barreto, embora iniciando no portentoso e  poderoso Correio da Manhã (acida e demolidoramente criticado em Recordações do escrivão Isaias Caminha—aliás, também João do Rio, impiedosamente satirizado pela “futilidade de sua pose”), sempre preferiu a  imprensa libertária, alternativa, contestadora.. O João cronista, autêntico seguidor da ‘arte das transições’ e da ‘circularidade na crônica’ de Machado de Assis (espécie de marca registrada, entre outras características marcantes, a “arte das transições” faz parte da  própria forma narrativa,,  unindo tópicos aparentemente distintos, um parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um resultado  surpreendente,cujo trajeto é ‘amenizado’ para os leitor , primeiro desviando-o do tema principal, depois retornando e reintegrando-o,numa espiral  muitas vezes nem percebida de todo) : Lima, praticante consciente de  um novo estilo, contundente, fomentador,para não dizer criador, da crônica contemporânea. João do Rio, criador do colunismo social, um olhar no mundanismo, antagoniza e confronta Lima Barreto, comentarista político, sempre no debruçar nos aspectos  sociais.
         Mas, embora dotados de ideologias, posturas, visões e interpretações nada convergentes, ambos profundamente interessados na cidade e no seu habitante. É nesse sentido e com essa índole que João do Rio registra, apregoa, expõe, dissemina e exalta a  “alma encantadora das ruas” da cidade – que por sua vez está também nos becos,ruelas,ladeiras, por onde Leonardo Filho e os personagens transitam ‘picarescamente’[sic] na obra de Manuel Antonio de Almeida e onde Lima Barreto constrói e ambienta todas suas tramas ficcionais. Os mesmos  contingentes sociais da cidade povoam literariamente as obras dos três escritores.




réquiem a Niemeyer : AS CIDADES - III



 São Paulo, cidade literária 

Há uma história da literatura que se projeta na cidade de São Paulo; e há uma história da cidade de São Paulo que se projeta na literatura  (Antonio Candido)

         A cidade de  São Paulo sempre foi pólo fundamental da literatura brasileira.
           E a aura do pioneirismo sempre a acompanhou, desde seus primórdios. Não surpreende  pois que em São Paulo tenha nascido e se manifestado um dos momentos fundamentais da história cultural brasileira , o Modernismo.A cidade , já natural e sequencialmente pioneira em diversas  manifestações literárias — desde os jesuítas, fundadores da Vila São Paulo de Piratininga, a 25 de janeiro de 1554 (não se pode  esquecer que o Diálogo sobre a conversão do gentio, de Manuel da Nóbrega, é o primeirissimo documento literário do Brasil, e o Auto da Pregação Universal, de José de Anchieta, a primeira peça encenatória) — o foi também , por exemplo, na precursora expressão poética do ‘indianismo’ no poema “Nênia” de Firmino Rodrigues Silva ;  nela  se deram ainda as realizações literárias iniciais de autores não paulistanos como José de Alencar, com seu “Como e por que me tornei romancista”, Castro Alves e seu “Navio negreiro”, Raimundo Corrêa com “Primavera”; nela ocorreu o primeiro movimento literário de vulto não apenas em relação à cidade mas ao próprio País ,em torno da Revista da Sociedade Filomática,em 1830,constituída na então recém-criada  Faculdade de Direito — a primeira manifestação de brasilidade literária por sua consciência de fins e coesão de esforços renovadores.

A cidade pioneira e  precursora
      O retrato da História exibe a importância capital da Faculdade de Direito, a partir de 1827, na congregação de homens e idéias por meio da convivência acadêmica que propiciou a formação de agrupamentos de estudantes, com idéias estéticas, manifestações literárias e expressões próprias — deflagrando um processo vigoroso de efervescência  intelectual que passou a agitar intensamente a pequena cidade de então. Ainda que se reconheça as limitações  quantitativa e qualitativa da produção desses estudantes, não há como negar que estabeleceram a literatura como atividade presente na comunidade paulistana.
        Deu-se por ela a primeira manifestação  de uma vertente poética considerada “o início da escola brasileira” : o indianismo, desenvolvido na obra de Gonçalves Dias, mas praticado pioneiramente no poema “Nênia”, de Firmino Rodrigues Silva, composto  entre as arcádias da Faculdade de Direito. E exercido ainda de forma pioneira em 1844, três anos antes do Primeiros cantos , de Gonçalves Dias, em “Cântico do tupi”, “Imprecação do índio” e “Prisioneiro índio”, do Barão de Paranapiacaba. Evidencia-se pois que quando Dias dominou o meio literário brasileiro, a poesia indianista -- base da obra do maranhense -- já existia e era praticada em São Paulo.Em 1845, com a fundação da Sociedade Epicuréia, consolida-se um processo de produção literária estudantil, embora de qualidade reduzida mas que viria a receber um influxo importante com a estadia de Castro Alves, em 1868 — foi em evento da Faculdade de Direito que declamou pela primeira vez o antológico  poema “Navio negreiro” -- quem incutiu um  teor social ao tipo de  obra, sobretudo poética, que se fazia
      Por essa época, o ‘corpo acadêmico’ já constitui um grupo social diferenciado da comunidade paulistana, a boemia e a literatura como manifestações mais características de um segmento com consciência grupal própria.Artistas criadores e ao mesmo tempo críticos, nas  revistas e jornais , são os estudantes, entre os naturais da cidade e os migrantes e radicados, autores de denúncias e protestos contra a corrupção, a hipocrisia, as injustiças da sociedade . Na década de 1880 São Paulo acolhe também um grupo de jovens inflamados pelo verbo eloqüente de José Bonifácio o moço , uma geração empenhada numa luta em prol das idéias liberalistas e republicanas : Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Afonso Pena, Rodrigues Alves.

A cidade modernizada e mutante
       O desenrolar e desdobrar de percursos literários que culminariam com o Modernismo foi coincidente  e conseqüente de um vigoroso processo de evolução econômica, social e urbana da cidade, e há de obrigatoriamente levar em conta determinados ‘símbolos’ da época : o modus literário que passou a ser atuante deve necessariamente ser  visto e analisado a partir do desenho dos cenários e ambientes em que veio a se desenrolar , que são  representações  significativas  da própria literatura brasileira na passagem do século XIX para o século XX.
O declínio do Império coincidiu com a ascensão das classes médias urbanas por força do processo da gradativa  metamorfose de uma sociedade rural para urbana.Em sua luta pela aquisição de status, segmentos da classe média passaram a prestigiar valores essencialmente burgueses, como o saber e agilidade intelectual -- até porque já era uma tradição,no mundo,a valorização de virtudes intelectuais, o escritor passando a ser objeto de grande consideração social e atividade cobiçada por muitos filhos da classe média. A valorização da inteligência -- a par de possibilitar uma “profissionalização da literatura” --com a ascensão social por via da  literatura, fez com que o escritor absorvesse valores aristocráticos, desprovidos de visão crítica do real -- com raríssimas exceções— e veio a comprometer, na imensa maioria dos autores , a vitalidade do estilo, em troca do emprego de  linguagem, digamos, ‘ornamental’.
         No caso particular de São Paulo — então com cerca de 240 mil habitantes na passagem do século XIX para XX, em radical mudança de perfil demográfico, com a maciça chegada de imigrantes, já um importante centro ferroviário, comercial, político, a indústria se implementando — o extraordinário desenvolvimento da cidade acentua uma significativa diferenciação social e evidencia um novo perfil de estrutura sócio-cultural, em que a produção literária antes deflagrada pelos estudantes, passa a ser executada por outro estamento —tornando-se manifestação de uma classe : a nova burguesia, mais urbana e ‘industrializante’, da mesma forma que em outras partes do País incorporando costumes segundo o modelo europeu, eivada de academicismo art-nouveau.
        Expressa-se  sobretudo um certo aristocratismo intelectual, que  agrada em cheio àquela burguesia ascendente : cristaliza-se pois um padrão estético-literário-cultural definido pela elite social, retirados do contingente inicial dos estudantes  os valores e parâmetros da produção literária. Constitui-se, numa sociedade de classes, uma literatura ‘classista’, elitista, convencional, integrada aos padrões de refinamento da classe dominante. Acentuam-se então os teores de sentimentalismo e romantismo,privilegiando a ‘pureza’ da língua, a escrita correta, o ‘apuro’, a limpidez, a sonoridade, a ‘riqueza do vocabulário’. A literatura como meio e degrau de ascensão social incorpora-se  à sociedade paulistana por meio dos padrões de suas classes dominantes.
         Contrária a essa vertente — personificada pelos “corifeus da bela escrita”, precipuamente, no Rio de Janeiro,  Coelho Neto, Olavo Bilac, os membros da chamada “geração boêmia” ; em São Paulo, Francisca  Julia, Vicente de Carvalho ,Julio Ribeiro, Silvio de Almeida — poucas vozes (ou melhor escritas ) se colocaram : notadamente Lima Barreto ,no Rio de Janeiro, e Alcântara Machado, em São Paulo  (há de se considerar também  Amadeu Amaral, Sylvio Floreal, em especial Juó Bananére, e anos depois João Antonio)  — que  adotaram e assumiram temática, ambientação, personagens, trama, linguagem e estilo eminentemente populares e ‘anti-aristocráticas’.
         Vale ainda considerar a tese do historiador e ensaísta José Murilo de Carvalho a distinguir cidades ortogenéticas -- caso do Rio do Janeiro, por exemplo -- e cidades heterogenéticas -- São Paulo como o maior exemplo, e que veio a marcar o tipo de intelectual e modo de produção cultural gerados pelas duas cidades .A ortogenética é caracterizada pela função política e administrativa, com grande peso do governo e do poder público, cidade de consumidores e não de produtores , baseada  no comércio e na  escravidão .Carvalho sustenta que a proclamação da República  teria reforçado ainda mais essa função política do Rio de Janeiro, com mais intensa ainda presença do poder público, fazendo com que grande parte da intelectualidade se vinculasse de alguma forma à burocracia pública, em geral como funcionários do governo federal : e se tal fato não “introduzia necessariamente uma perspectiva governista na obra desses autores”, frisa ele, “certamente constituía limitação à sua liberdade de criação”. De outro lado, a quase obrigação que se impunha ao Rio de passar a  imagem civilizada do país fazia com que seus intelectuais tivessem grande dificuldade em compreender perfeitamente a realidade do País e da cidade — daí as contradições e bloqueios que se interpunham no caminho da criatividade dos intelectuais, a cidade não conseguindo produzir uma cultura moderna/modernista. Diferente de São Paulo.
         A cidade heterogenética, que São Paulo exemplifica, estava fora do centro do poder político, caracterizada como cidade de produtores, com maior liberdade de criação, maior iniciativa cultural, com predomínio da atividade econômica e comercial e não política e administrativa — somado ao fato de que nunca teve grande presença escrava Em contrapartida, a intelectualidade paulista era muito menos vinculada ao Estado, e era na verdade patrocinada pela própria oligarquia local -- muitos dos intelectuais eram aliás eles mesmos membros da oligarquia. A independência em relação ao Estado lhes dava maior liberdade de criação Além disso, havia maior homogeneidade social entre a intelectualidade paulista, e isso propiciou a São Paulo maior possibilidade do que o Rio de Janeiro  de desenvolver um projeto cultural ,mais consistente e ‘autônomo’ : na Paulicéia, houve “melhor condição de um trabalho intelectual em cima da realidade social concreta”.
        O Modernismo de 1922 expressou um esforço para retirar à literatura o caráter de classe -- dado pela elite social e cultural pós -1890 -- transformando-a em bem comum a todos. Como o Romantismo, o Modernismo é de todas as correntes literárias brasileiras a que adquiriu tonalidades especificamente paulistanas. Antonio Candido sentencia que “se em São Paulo não tivesse havido os escritores do período clássico, do Naturalismo, do Parnasianismo, do Simbolismo, a literatura brasileira teria perdido um ou outro bom autor, mas nada de irremediável. Se tal acontecesse no Romantismo e no Modernismo, o Brasil ficaria mutilado de algumas de suas mais altas realizações artísticas, de  obras culminantes como Macário e Macunaíma, por exemplo. Dois momentos paulistanos, dois momentos em que a cidade se projeta sobre o País”.
        Nos primeiros anos do século XX, quando novas correntes artísticas começaram a circular pela Europa,a maior parte do mundo ocidental encontrava-se em meio a transformações sociais, políticas, econômicas, tecnológicas e culturais que alteraram radicalmente a forma de viver e de sentir o mundo. Invenções revolucionárias como o rádio, o telefone, o automóvel e o cinema passaram a fazer parte do cotidiano das grandes cidades, cada vez mais urbanizadas. A industrialização modificara a economi das potências, e os lucros acumulados pela produção em larga escala de artigos manufaturados garantiam  tamanha sensação de conforto, segurança e otimismo em relação ao futuro, que o período ficou conhecido como belle époque — uma época de efervescência artística sem precedentes. Mas no extremo oposto,para as classes trabalhadoras o tempo era de lutas por melhores condições de vida e, no plano internacional um conjunto de fatores econômicos e políticos levaram à eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. O Brasil vivia então  período de grandes mudanças,  com a urbanização e a adoção de novas tecnologias que transformavam o ritmo de vida e o cenário das grandes cidades, e que pareciam alterar a percepção do mundo. O intenso crescimento urbano e industrial, acelerado desde o começo do século, e a chegada em massa de imigrantes, principalmente italianos, muitos dos quais haviam vivido a experiência da luta de classes em seus países, propiciando inclusive a difusão de idéias anarquistas e socialistas, fizeram com que o proletariado crescesse  e se  organizasse : nas primeiras décadas do século XX ocorreram várias greves em São Paulo,  a maior delas em 1917 - mesmo ano da Revolução Russa. Nos primeiros anos do século XX vieram radicais transformações políticas, com acontecimentos decisivos para a vida nacional, como as revoltas deflagradas pelo movimento tenentista ( julho de 1922 no Rio de Janeiro; julho de 1924 em São Paulo),a Coluna Prestes, a fundação do Partido Comunista, a derrocada da República Velha, das oligarquias rurais e da "política café-com-leite", o início da Era Vargas.
      É nesse contexto de crises e incertezas que surgiram as correntes de vanguarda (do francês avant-garde, "o que marcha à frente"), entre elas  o Futurismo, o Cubismo, o Dadaísmo, o Expressionismo, o Surrealismo, recebidas com entusiasmo por escritores que procuravam renovar as formas de expressão artística. Muito antes de 1922 os artistas participantes da Semana já produziam obras influenciadas pelas novas correntes européias, como a publicação, em 1917, de diversos livros de poemas em que jovens autores buscavam uma nova linguagem, ainda não bem realizada., em  Nós, de Guilherme de Almeida; Juca Mulato, de Menotti del Picchia;  Há uma gota de sangue em cada poema, de Mário de Andrade — e a célebre exposição de Anita Malfatti, em 1917, duramente criticada por Monteiro Lobato no famoso artigo “Paranóia ou mistificação ?”
    A Semana de Arte Moderna de 1922 foi o fato concreto que definitivamente integrava o Brasil no contexto filosófico-estético-cultural do século XX  e levava-o a inserir-se nas coordenadas culturais, políticas e socioeconômicas dos novos tempos —o mundo da técnica, o mundo mecânico e mecanizado. A partir dela caminha o movimento modernista em busca de padrões autônomos e formas autênticas para a criação estética nacional -- e não somente no âmbito artístico : da mesma forma no campo do pensamento social, os intelectuais procuravam estabelecer novos modos de se tratar e compreender a cultura e a história do Brasil, estabelecendo novas interpretações e valores para a  identidade nacional e dando  início à consolidação institucional do pensamento sociológico brasileiro. Gerou sobretudo  um estado permanente, latente , criativo, estimulante, instigante, de inquietação intelectual, e iniciou um processo de unificação cultural sem precedentes no Brasil.
     Fica para a História o depoimento de Mário de Andrade:
                   "A Semana de Arte Moderna dava um primeiro golpe na pureza do nosso aristocracismo espiritual. Consagrado o movimento pela aristocracia paulista, si ainda sofreríamos algum tempo ataques por vezes cruéis, a nobreza regional nos dava mão forte e... nos dissolvia  nos favores da vida. Está claro que não agia de caso pensado, e si nos dissolvia era pela própria natureza e o seu estado de decadência. Numa fase em que ela não tinha mais nenhuma realidade vital, como certos reis de agora, a nobreza rural paulista só podia nos transmitir a sua gratuidade. Principiou-se o movimento dos salões. E vivemos uns oito anos até perto de 1930, na maior orgia intelectual que a história do país registra. (...) se alastrou pelo Brasil o espírito destruidor do movimento modernista. Isto é, o seu sentido verdadeiramente específico. Porque, embora lançando inúmeros processos e idéias novas, o movimento modernista foi essencialmente destruidor.".

  A "destruição" tinha como objetivo, em um primeiro momento, o rompimento com estéticas passadas, especialmente a parnasiana — em oposição ao rigor gramatical e ao preciosismo lingüístico parnasianos, os poetas modernistas valorizavam a incorporação de gírias e de sintaxe irregular, e a aproximação da linguagem oral de vários segmentos da sociedade brasileira— e mais: a preparação de um terreno onde se pudesse reconstruir a a cultura brasileira, sobre bases nacionais, a realização de uma revisão crítica da história e das tradições culturais do país. Os autores do Modernismo procuraram no índio e no negro  os elementos primordiais da cultura brasileira que proporcionariam a reconstrução da realidade nacional, e procuraram retratar a mistura de culturas e raças existente no país.
    Porém, o nacionalismo, a mais marcante característica do Modernismo, iria separar ideologicamente os adeptos do movimento, opondo os grupos “Pau-Brasil”,e depois “Antropofágico”(que incorporva o comunismo, o freudianismo e o matriarcalismo), de  Oswald de Andrade , Raul Bopp e Tarsila do Amaral , e  o “Verde-Amarelismo , de Menotti del Picchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. Estudiosos sustentam que a verdadeira ‘revolução’ modernista se deu mesmo em 1924,  ano do rompimento de Graça Aranha  com a Academia Brasileira de Letras, ano do “Manifesto Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, anos de dois textos fundamentais de Mario de Andrade : A escrava que não é Isaura — a ‘teoria’ do modernismo compendiada - e seu  livro mais ousado, em termos formais, Losango caqui.
    Em seguida, 1928 marca a publicação de Macunaíma, de Mario de Andrade, máxima obra literária do movimento, excepcional romance-retrato do Brasil de grande miscigenação cultural — as tradições culturais indígenas dos primórdios ao lado da modernidade europeizada dos centros urbanos brasileiros da época — e  de Retrato do Brasil, de Paulo Prado, inaugurando o ensaio de cunho ao mesmo tempo histórico e sociológico que abriria caminho para o grande ciclo de “interpretações do Brasil”.À renovação estética modernista,na década de 1920, alia-se no decênio seguinte  o ensaio de interpretação e crítica social, que tenta recontar o processo de formação histórica do país: a procura da identidade social passa igualmente pela busca premente de uma ponte entre uma completa renovação cultural e a reforma da sociedade, uma ponte entre a modernidade e a modernização do país .
    O ano de 1930 é a época de instauração do Estado Novo, que se ‘apropria’ ideológica e retoricamente  do Modernismo — Getulio Vargas declarava  em seu  discurso de posse: “As forças coletivas que provocaram o movimento revolucionário do Modernismo na literatura brasileira  foram as mesmas que precipitaram no campo social e político a Revolução de 1930 (seguindo uma sugestão formulada por Cassiano Ricardo) — mas inicia um período de intensa fermentação política, social  e cultural. É na primeira metade dessa década  que nascem as primeiras tentativas de interpretação de conjunto da história, da economia e da sociedade brasileira.Sobretudo a  prosa literária se desenvolve, ficcionalmente no romance e no conto, que retratam decadência da aristocracia rural, a formação do proletariado urbano, a luta do trabalhador, o êxodo rural, as cidades em rápida transformação — os cenários para a expansão e proliferação dos ensaios de interpretação do País, de Gilberto Freyre , Paulo Prado (Retrato do Brasil),  Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) ,Caio Prado Júnior (Formação do Brasil contemporâneo), todos lastreados pela ‘índole’ modernista em busca da síntese explicativa dos múltiplos aspectos da vida social brasileira e de seu desenvolvimento histórico.
       Acima de tudo um processo de mudança cultural geral, em direção a uma nova reconstrução sócio-política da identidade nacional, o Modernismo “difunde-se no tempo, balizando grande parte dos sequentes debates intelectuais, espalha-se no espaço, o poderoso ímã da literatura interferindo com a tendência sociológica, dando origem àquele gênero misto de ensaio, construído na confluência da história com a economia, a filosofia ou a arte, que é uma forma bem brasileira de investigação  e descoberta do Brasil”, sentencia Antonio Candido. Irradiante , difuso e difusor, o Modernismo modelou substancialmente a literatura brasileira no século XX e desdobrou-se pelas décadas seguintes em  irreversível processo de  amadurecimento : uma terceira fase  do movimento,na busca de uma nova linguagem, que expressasse os anseios de renovação do pós-guerra, veio na denominada “geração de 1945”, depois, na Poesia Concreta, da mesma forma na Poesia-Práxis , na atual narrativa em prosa —   caracterizada esta por novas formas de  linguagem , ora intensa e ágil, ‘cinematográfica’ , ora densa e introspectiva, ‘filosófica’,e pela preponderante ambiência urbana retratando “a vivência vertiginosa nas grandes cidades”, confluiu no último decênio do século XX e no despontar deste Terceiro Milênio para o irreversível despontar  de uma nova geração de escritores, que abre espaço na literatura brasileira com uma marcante característica vetorial  : o deslocamento maciço do eixo principal  da nova criação literária para São Paulo.
    Na cidade, os novos e novíssimos ficcionistas exercem sua prosa “de estrutura desconstrutivista , subversiva da linearidade, de narrativa fragmentada, quebradiça, de temática citadina, com os elementos da urbanidade pós-moderna , as tensões sociais e os conflitos individuais, o envolvimento pela violência urbana , os impasses existenciais —  fomentando uma produção literária como não é feita em nenhuma outra cidade do País.

     A São Paulo heterogenética continua abrigando escritores, naturais ou imigrantes, paulistas ou radicados, que produzem uma literatura ímpar, diferenciada, atualizada com os elementos da realidade, afinada com a modernidade, determinante — hoje como ontem, e desde sempre — da própria cultura brasileira.

réquiem a Niemeyer : AS CIDADES - IV


Petrópolis, também cidade literária

         Petrópolis não é apenas cidade de cunho histórico, político, institucional,  verdadeiras ‘capital social’  do Brasil no século XIX,tendo sido de fato a capital administrativa do Império – cenáculo não apenas de residência ou hospedagem de figuras proeminentes do governo e administração pública,homens de Estado ( em Petrópolis, o então presidente  Hermes da Fonseca casou-se com Nair de Tefé, em 1910; o presidente Nilo Peçanha   mantinha  casa de veraneio ,assim como o presidente Washington Luís -- tradição, seguido por presidentes como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Fernando Henrique Cardoso), inclusive estrangeiros (em 1861,  Maximiliano da Áustria, que viria a ser imperador do México, visitou o Palácio Imperial, e ao longo da história da cidade, outras autoridades estrangeiras  marcariam presença: Balduíno da Bélgica,em 1920 ; Carol I, da Romênia,em 1944; Olavo V, da Noruega, em 1967 ;  os reis da Suécia, Gustavo e Sílvia,em 1984; em 1913 o então ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt,  tal como os presidentes da Bolívia, Henrique Peñarada e o do Paraguai, Higino Moringo,ambos em 1943; representantes dos Estados americanos se reuniram na cidade em setembro de 1947, na Conferência Interamericana de Manutenção da Paz, no Hotel Quitandinha -- encontro que contou, entre outros, com as presenças de Harry Truman, presidente dos EUA, e de Evita Perón, que chefiou a delegação argentina)., diplomatas, até mesmo cientistas (os físicos Albert Einstein e Guglielmo Marconi,  respectivamente em 1925 e em 1935;  o  cientista Peter Medawar, prêmio Nobel de Física em 1954, de ascendência britânica, nasceu em Petrópolis em 1929 e morou na cidade até os 14 anos de idade),e  da própria ocorrência de fatos e eventos que marcaram a História brasileira tanto do século XIX como do século XX (Petrópolis  passou a ser  a capital fluminense  em 1893 – ano da  Revolta da Armada,  quando a cidade do Rio de Janeiro ,então capital da República, foi bombardeada e declarada a  fragilidade  da então capital  do Estado do Rio, Niterói  --  até 1903). 
Histórica, política, institucional – mas Petrópolis é também autêntica ‘cidade literária’ – no acolhimento, permanente ou temporário, corrente ou circunstancial, de uma plêiade significativa de escritores, literatos,intelectuais, a ela ligados de uma forma ou de outra, que aqui residiram\residem, aqui estiveram, aqui mantiveram residência, etc.,e nela,ou inspirados nela,ou nela ambientadas,ou a ela referenciadas,  conceberam, idealizaram,criaram e produziram obras ficcionais e não-ficcionais, textos em prosa e em verso, contos e novelas, crônicas e peças teatrais,ensaios e registros memorialísticos,  discursos e conferências.
          O papel da cidade na criação literária de escritores é tão incontestável, tamanha sua conotação, ou ‘força’ literária emanadas, que um dos maiores da Literatura Brasileira, Machado de Assis, que aqui nunca esteve ‘de corpo presente’ foi justo um dos que mais escreveram  sobre ela,mais citou-a tanto em contos,romances e crônicas – além de nela ambientar sua primeiríssima peça teatral,”Desencantos”, de 1861, e de publicar alguns de seus primeiros poemas em 1858 e em 1859 no jornal petropolitano O Parahyba, aliás periódico importantíssimo na história da imprensa brasileira,ainda não devidamente estudado (preparo um livro especial sobre o tema).  José de Alencar, freqüentador assíduo, escolheu a cidade como ambientação  de passagem de sua primeira obra ficcional, a novela Cinco minutos, de 1856; Joaquim Manuel de Macedo,ainda que visitante raro da cidade, escreveu alentado conjunto de crônicas,em forma de cartas – sob o título geral de “Viagem a Petrópolis por?” -   no jornal A Nação,em abril-junho 1853;  Joaquim França Junior, que muito aqui esteve, ambientou a cidade em duas de suas peças, uma delas “De Petrópolis a Paris” infelizmente perdida;  Olavo Bilac, “príncipe dos poetas brasileiros”, expressou numa crônica todo seu encantamento com a cidade, enaltecida sua beleza e ‘pureza’ para contrapor-se à hipótese de vir a ser capital do estado do Rio de Janeiro, como cogitado à época.
           Petrópolis, se não berço de nascença, caso de Raul de Leoni, foi a cidade eleita para vivência – longas temporadas, veraneio e férias, residência final – por poetas de diferentes épocas e gerações, de Raimundo Correa a Manuel Bandeira, de Vinicius de Moraes a  Dante Milano e Fernando Py. E viu nascer em 1932, e aqui viver por muito tempo, a escritora Sylvia Orthof, premiada nacional e internacionalmente por suas extraordinárias  obras infanto-juvenis.
           Alguns dos mais influentes pensadores brasileiros encontraram aqui o cenário ideal para produzir páginas importantes do ensaísmo histórico, político ou cultural – caso de Ruy Barbosa, um dos maiores intelectuais e figura política proeminente da história brasileira,que inclusive morreu em 1923 em sua casa petropolitana na avenida Ipiranga(chamada carinhosamente por ele de “Sweet Home”), e aqui escreveu por exemplo a maior parte das conferências que pronunciou em sua segunda memorável campanha presidencial(de 1909), em 1917 fez seu célebre discurso incentivando o alinhamento do Brasil com os aliados no Teatro de Petrópolis, concluiu a famosa “Oração aos moços”,de 1920, e também a introdução do primeiro volume da obra Queda do Império,de 1889; Joaquim Nabuco, em cuja  casa na avenida Piabanha escreveu alguns de seus Pensamentos soltos, que veio a ser publicado em Paris em 1901; o barão do Rio Branco (José da Silva Paranhos)  elaborou  em sua residência de verão, localizada  na rua que hoje leva seu nome, e na cidade  foi  assinado em 1908 o Tratado de Petrópolis, que demarcou as  fronteiras com a Guiana Holandesa e a Bolívia e incorporou  ao Brasil, o território do Acre;  Alceu Amoroso Lima,nascido no  Rio de Janeiro em 1893, radicado em Petrópolis – sua residência, na rua Mosela, hoje é o Centro Cultural Alceu Amoroso Lima  e seu  pseudônimo  Tristão de Atayde denomina o centro cultural da Prefeitura , localizado na praça Visconde de Mauá -- e aqui falecido em 1983 , tornou-se por várias décadas o mais influente pensador católico em atuação no país.
        A cidade ofereceu as condições e circunstâncias para que Jorge Amado concluísse,  em seu apartamento no antigo hotel Quitandinha, o romance Gabriela, cravo e canela.,e escrevesse partes de outras obras; para Alberto Santos Dumont elaborar aqui seu segundo livro, o autobiográfico O que eu vi.O que nós veremos, em sua bela residência denominada “A Encantada”, hoje ponto de atração turístico-cultural -- também na casa teria sido escrito, por volta de 1902, um manuscrito de 312 páginas ,recentemente descoberto por familiares,no qual destacam-se trechos sobre o sonho de virar aeronauta e o encontro com Thomas Edison.Abrigou o escritor austríaco Stephan Zweig durante os anos 1940, vindo da Alemanha sob o jugo hitlerista, para  aqui escrever sua autobiografia O mundo que eu vi,  a novela O jogador de xadrez, e sobretudo criar e publicar sua famosa obra Brasil, país do futuro,em 1941. Acolheu a poetisa chilena Gabriela Mistral, então consulesa do Chile (ao longo da Iª República, de 1889 a 1930, cerca de 30 países mantiveram  consulados  em Petrópolis, entre eles Inglaterra,  França,  Itália,  Alemanha,  Rússia , Estados Unidos, Portugal,  Uruguai,Chile, Noruega, Santa Sé.),durante a década de 1940, quando foi agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura -- única mulher na América Latina a ser contemplada..E recebeu, por diversas vezes, na Samambaia, a escritora inglesa Elizabeth Bishop, amiga da arquiteta, paisagista e artista Maria Carlota Costallat de Macedo Soares(Lota).
     Não há como deixar de se realçar a importância cultural de Petrópolis, mostrando contribuições e manifestações literárias e artísticas talvez pouco conhecidas ou mesmo desconhecidas por muitos, a proporcionar o pleno conhecimento desse aspecto marcante da cidade, expresso por escritores  naturais ou não, residentes ou não, hóspedes ou visitantes,privilegiados pela tradição petropolitana de acolhida e reconhecimento, que com ela interagiram,e interagem, literariamente, num significativo painel de autores de extrema qualidade que contribuíram, e contribuem,por meio da Cidade Imperial, para a própria história literário-artística do Brasil.