quarta-feira, 26 de setembro de 2012
A propósito de Camilo Castelo Branco,e um sesquicentenário
A propósito de Camilo Castelo Branco,e um sesquicentenário
Estive presente, atento às palestras e falas de eméritos
expositores, e com algumas intervenções aqui e ali,no “Congresso Internacional
Camilo Castelo Branco e o Oitocentos: 150 anos de Amor de perdição”,realizado
em 24 e 25.09 no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro (em 14 e
15 deu-se na USP). A ocasião, se já propícia e notável em si pelo
sesquicentenário do romance camiliano – um dos mais conhecidos e lidos de sua
lavra – tornou-se\torna-se extremamente relevante para a expansão (para quem
pouco conhece: formação) e difusão de Camilo e de sua obra em geral. Particularmente
no que se refere ao significativo viés das fortes, ‘veementes’, relações do
escritor com o Brasil.
Camilo almejou intensamente vir para o Brasil, inclusive
conseguindo em 1855, depois de obstinado empenho, sua nomeação para adido
honorário à Legação portuguesa na corte do Rio de Janeiro – só que não a
concretizou,diz-se que “frustrado e violentamente furioso”, por não ter direito
a remuneração alguma nem acesso à carreira diplomática. Se não veio em pessoa,
aqui chegou com impressionantes prestígio literário e popularidade junto ao
leitor brasileiro, quase uma ‘devoção’.
Trocou vasta correspondência com brasileiros – inclusive o
imperador Pedro II(que em Lisboa pessoalmente visitou Camilo em 1872) – e com
portugueses estabelecidos no Brasil – o mais notório, Faustino Xavier de Novais
(irmão de Carolina, esposa de Machado de Assis – e um de seus maiores amigos),quem mais divulgou e propagou
aqui a obra camiliana,até pelas fraternais relações entre ambos : a obra de Faustino,Novas poesias, publicada em 1858 no Porto, foi precedidas de um
juízo crítico de Camilo Castelo Branco, quem também colaborou assiduamente no
jornal O Futuro, fundado por Faustino
em 1862, entre crônicas, ensaios e
narrativas como “O maior amigo de Luís de Camões”, “Conhecimentos úteis”,“Que
destino!”, “Dous casamentos”, o romance “Agulha em palheiro”,em folhetins –
e Ana Augusta Plácido, companheira de
Camilo, publicou o artigo “A desgraça da riqueza”.(Machado comentou, em O
Futuro,15.03.1863, seu romance Luz coada por ferro).
A admiração de Camilo ao Brasil era tanta que fez questão,
também com muito empenho, de doar sua rica biblioteca – ou “livraria”,como
preferia dizer --e seu acervo epistolar ao Real Gabinete Português de Leitura,
o que se deu em 1882: tive o prazer recentemente de conhecer in loco,e em detalhes,.esse relicário
bibliográfico e documental. E o culto a Camilo, no seio da intelectualidade
brasileira, pode ser exemplificado pelos quase 100 volumes de
novelas,romances,teatro e ensaios do português na biblioteca pessoal de Ruy
Barbosa (a qual, em torno de outras obras e autores, frequentemente visito
para pesquisas).
Um parêntese; em contrapartida, na biblioteca de Camilo
encontravam-se três obras de machado tu
só tu puro amor, helena e memórias póstumas de brás cubas.
Nem tudo ‘foram flores’, porém: Camilo manteve
irreversível e virulenta crítica, e polêmica, a José de Alencar – o que,
segundo algumas interpretações, face à grande amizade e respeito do autor de Helena pelo criador de Senhora, explicaria um possível ‘distanciamento’,quanto
a referências e alusões, de Machado com relação a Camilo (especula-se a
existência de outros fatores e motivos). Suposto distanciamento, não obstante
muitas, e retumbantemente significativas, similaridades e ‘parentescos’
literários entre eles.
Comparado, quantitativamente, a outros autores lusos (conforme meu estudo
“Machado de Assis e os portugueses”), a saber Camões, Almeida Garret, Alexandre
Herculano, Bocage, Antonio Dinis de Cruz e Souza, Antonio Feliciano de
Castilho, Antonio Vieira, Eça de Queiroz -- Camilo é pouco citado nominalmente na obra machadiana
(e nenhuma obra do escritor português constava da biblioteca pessoal de
Machado; em contrapartida, na biblioteca de Camilo encontravam-se três obras
machadianas, Tu só tu puro amor
(teatro – aliás, escrita para as comemorações do tricentenário de Camões,em
1880; e mais os sonetos “Quando transposta a lúgubre morada”, “Quando torcendo
a chave misteriosa”,“Tu quem és? Sou o século que passa” e “Um dia, junto à foz
do brando e amigo”), Helena e Memórias póstumas de Brás Cubas); porém foi notavelmente influente em Machado e
o inspirou incisivamente em certos
recursos narrativos, como as digressões metaliterárias, a metanarrativa da
ficção, as interferências do narrador em diálogo com o leitor, o ‘jogo
autor-narrador-leitor’ – tudo, aliás, anteriormente a Sterne, dado como
inspirador e ‘introdutor’ desses recursos na prosa de Machado, especificamente
a partir de 1880 -- o uso da ironia : já
foram apontados elementos da novela Coração ,cabeça e estômago: uma estética da
ambiguidade, de Camilo, explicitamente em Memórias póstumas de Brás Cubas, e de certo modo em Quincas
Borba , mas também, e subrepticiamente, em vários contos,
até mesmo,sabemos, omo uma espécie de ‘marca registrada’ machadiana..
Se de um lado rarefeitas, breves
e episódicas, as alusões diretas a Camilo feitas por Machado – apenas 4 (consoante
meu estudo) : os romances Agulha
no palheiro (em crônica O Futuro,
15.01.1863) e Coração, cabeça e estômago (em Brás
Cubas ), a peça teatral “Espinhos e flores” (em
crônica no Diário do Rio de Janeiro, 13.04.1860), a referência a pince-nez , ou a “luneta pênsil” que
teria sido invenção de Camilo, em crônica na Gazeta de Notícias, 07.03.1889 -- de outro bastante marcante é a ‘presença’ camiliana em determinados temas, no próprio estilo
narrativo em algumas passagens dos textos ficcionais de Machado,nos tons de
ironia e ceticismo, no ‘desdém’ (contido) ao realismo\naturalismo; e ,de resto,
são muitas as referencias literárias na obra de Camilo que, seriam fonte e mote
para vários textos ficcionais de Machado
É o que catalogo como leituras
oblíquas, influencias subterrâneas, a nível macrotextual.
sábado, 15 de setembro de 2012
Machado de Assis e o fantástico
a propósito do evento Fantasticon 2012 – VI Simpósio de Literatura Fantástica (promovido pela Biblioteca Viriato Corrêa - Temática em Literatura Fantástica, São Paulo, em (15 e 16.09 e 22 e 23.09. e para quem não sabe: Machado de Assis praticou,'avant la lettre', o gênero fantástico em 17 contos [vide http://www.facebook.com/pages/Di%C3%A1rio-das-Letras/394367320630177?notif_t=page_new_likes]
________________________
aqui, 2 contos da coletânea que organizei e veiculei online em 2008.
O país das quimeras
(conto fantástico)
publicado
originalmente in O Futuro ,1862 [1]
Arrependera-se Catão de haver ido
algumas vezes por mar quando podia ir por terra. O virtuoso romano tinha razão.
Os carinhos de Anfitrite são um tanto raivosos, e muitas vezes funestos. Os
feitos marítimos dobram de valia por esta circunstância, e é também por esta
circunstância que se esquivam de navegar as almas pacatas, ou, para falar mais
decentemente, os espíritos prudentes e seguros.
Mas, para justificar o provérbio
que diz: debaixo dos pés se levantam os trabalhos — a via terrestre não é
absolutamente mais segura que a via marítima, e a história dos caminhos de
ferro, pequena embora, conta já não poucos e tristes episódios.
Absorto nestas e noutras
reflexões estava o meu amigo Tito, poeta aos vinte anos, sem dinheiro e sem
bigode, sentado à mesa carunchosa do trabalho, onde ardia silenciosamente uma
vela.
Devo proceder ao retrato físico e
moral do meu amigo Tito.
Tito não é nem alto nem baixo, o
que equivale a dizer que é de estatura mediana, a qual estatura é aquela que se
pode chamar francamente elegante na minha opinião. Possuindo um semblante
angélico, uns olhos meigos e profundos, o nariz descendente legítimo e direto
do de Alcibíades, a boca graciosa, a fronte larga como o verdadeiro trono do
pensamento, Tito pode servir de modelo à pintura e de objeto amado aos corações
de quinze e mesmo de vinte anos.
Como as medalhas, e como todas as
coisas deste mundo de compensações, Tito tem um reverso. Oh! triste coisa que é
o reverso das medalhas! Podendo ser, do colo para cima, modelo à pintura, Tito
é uma lastimosa pessoa no que toca ao resto. Pés prodigiosamente tortos, pernas
zambras, tais são os contras que a pessoa do meu amigo oferece a quem se
extasia diante dos magníficos prós da cara e da cabeça. Parece que a natureza
se dividira para dar a Tito o que tinha de melhor e o que tinha de pior, e
pô-lo na miserável e desconsoladora condição do pavão, que se enfeita e
contempla radioso, mas cujo orgulho se abate e desfalece quando olha para as
pernas e para os pés.
Só há que censurar em Tito as
fraquezas de caráter, e deve-se crer que elas são filhas mesmo das suas
virtudes. Tito vendia outrora as produções da sua musa, não por meio de uma
permuta legítima de livro e moeda, mas por um meio desonroso e nada digno de um
filho de Apolo. As vendas que fazia eram absolutas, isto é, trocando por
dinheiro os seus versos, o poeta perdia o direito da paternidade sobre essas
produções. Só tinha um freguês; era um sujeito rico, maníaco pela fama de
poeta, e que, sabendo da facilidade com que Tito rimava, apresentou-se um dia
no modesto albergue do poeta e entabulou a negociação por estes termos:
-- Meu caro, venho propor-lhe um
negócio da China.
— Pode falar, respondeu Tito.
— Ouvi dizer que você fazia
versos... É verdade?
Tito conteve-se a custo diante da
familiaridade do tratamento, e respondeu:
— É verdade.
— Muito bem. Proponho-lhe o
seguinte: compro-lhe por bom preço todos os seus versos, não os feitos, mas os
que fizer de hoje em diante, com a condição de que os hei de dar à estampa como
obra da minha lavra. Não ponho outras condições ao negócio: advirto-lhe, porém,
que prefiro as odes e as poesias de sentimento. Quer?
Quando o sujeito acabou de falar,
Tito levantou-se e com um gesto mandou-o sair. O sujeito pressentiu que, se não
saísse logo, as coisas poderiam acabar mal. Preferiu tomar o caminho da porta,
dizendo entre dentes: “Hás de procurar-me, deixa estar!”
O meu poeta esqueceu no dia
seguinte a aventura da véspera, mas os dias passaram-se e as necessidades
urgentes apresentaram-se à porta com o olhar suplicante e as mãos ameaçadoras.
Ele não tinha recursos; depois de uma noite atribulada, lembrou-se do sujeito,
e tratou de procurá-lo; disse-lhe quem era, e que estava disposto a aceitar o
negócio; o sujeito, rindo-se com um riso diabólico, fez o primeiro
adiantamento, sob a condição de que o poeta lhe levaria no dia seguinte uma ode
aos Polacos. Tito passou a noite a arregimentar palavras sem idéia, tal era seu
estado, e no dia seguinte levou a obra ao freguês, que achou boa e dignou-se
apertar-lhe a mão.
Tal é a face moral de Tito. A
virtude de ser pagador em dia levava-o a mercar com os dons de Deus; e ainda
assim vemos nós que ele resistiu, e só foi vencido quando se achou com a corda
ao pescoço.
A mesa à qual Tito estava
encostado era um traste velho e de lavor antigo; herdara-a de uma tia que lhe
havia morrido fazia dez anos. Um tinteiro de osso, uma pena de ave, algum
papel, eis os instrumentos de trabalho de Tito. Duas cadeiras e uma cama completavam
a sua mobília. Já falei na vela e na galga.
À hora em que Tito se engolfava
em reflexões e fantasias era noite alta. A chuva caía com violência, e os
relâmpagos que de instante a instante rompiam o céu deixavam ver o horizonte
pejado de nuvens negras e túmi-das. Tito nada via, porque estava com a cabeça
encostada nos braços, e estes sobre a mesa; e é provável que não ouvisse,
porque se entretinha em refletir nos perigos que oferecem os diferentes modos
de viajar.
Mas qual o motivo destes
pensamentos em que se engolfava o poeta? É isso que eu vou explicar à legitima
curiosidade dos leitores. Tito, como todos os homens de vinte anos, poetas e
não poetas, sentia-se afetado da doença do amor. Uns olhos pretos, um porte
senhoril, uma visão, uma criatura celestial, qualquer coisa por este teor,
havia influído por tal modo no coração de Tito, que o pusera, pode-se dizer, à
beira da sepultura. O amor em Tito começou por uma febre; esteve três dias de
cama, e foi curado (da febre e não do amor) por uma velha da vizinhança, que
conhecia o segredo das plantas virtuosas, e que pôs o meu poeta de pé, com o
que adquiriu mais um título à reputação de feiticeira, que os seus milagrosos
curativos lhe haviam granjeado.
Passado o período agudo da
doença, ficou-lhe este resto de amor, que, apesar da calma e da placidez, nada
perde da sua intensidade. Tito estava ardentemente apaixonado, e desde então
começou a defraudar o freguês das odes, subtraindo-lhe algumas estrofes
inflamadas, que dedicava ao objeto dos seus íntimos pensamentos, tal qual como
aquele sr. d’Ofayel, dos amores leais e pudicos, com quem se pareceu, não na
sensaboria dos versos, mas no infortúnio amoroso.
O amor contrariado, quando não
leva a um desdém sublime da parte do coração, leva à tragédia ou à asneira. Era
nesta alternativa que se debatia o espírito do meu poeta. Depois de haver gasto
em vão o latim das musas, aventurou uma declaração oral à dama dos seus
pensamentos. Esta ouviu-o com dureza d’alma, e quando ele acabou de falar
disse-lhe que era melhor voltar à vida real, e deixar musas e amores, para
cuidar do alinho da própria pessoa. Não
presuma o leitor que a dama de quem lhe falo tinha a vida tão desenvolta como a
língua. Era, pelo contrário, um modelo da mais seráfica pureza e do mais perfeito
recato de costumes; recebera a educação austera de seu pai, antigo capitão de
milícias, homem de incrível boa fé, que, neste século desabusado, ainda
acreditava em duas coisas: nos programas políticos e nas cebolas do Egito.
Desenganado de uma vez nas suas
pretensões, Tito não teve força de ânimo para varrer da memória a filha do
militar: e a resposta crua e desapiedada da moça estava-lhe no coração como um
punhal frio e penetrante. Tentou arrancá-lo, mas a lembrança, viva sempre, como
ara de Vesta, trazia-lhe as fatais palavras ao meio das suas horas mais alegres
ou menos tristes da sua vida, como aviso de que a sua satisfação não podia
durar e que a tristeza era o fundo real dos seus dias. Era assim que os
egípcios mandavam pôr um sarcófago no meio de um festim, como lembrança de que
a vida é transitória, e que só na sepultura existe a grande e eterna verdade.
Quando, depois de voltar a si,
Tito conseguiu encadear duas idéias e tirar delas uma conseqüência, dois
projetos se lhe apresentaram, qual mais próprio a granjear-lhe a vilta de
pusilânime; um concluía pela tragédia, outro pela asneira; triste alternativa
dos corações não compreendidos! O primeiro desses projetos era simplesmente
deixar este mundo; o outro, limitava-se a uma viagem, que o poeta faria por mar
ou por terra, a fim de deixar por algum tempo a capital. Já o poeta abandonava
o primeiro por achá-lo sanguinolento e definitivo; o segundo parecia-lhe
melhor, mais consentâneo com a sua dignidade e sobretudo com os seus instintos
de conservação. Mas qual o meio de mudar de sítio? Tomaria por terra? tomaria
por mar? Qualquer destes dois meios tinha seus inconvenientes. Estava o poeta
nestas averiguações, quando ouviu que batiam à porta três pancadinhas. Quem
seria? Quem poderia ir procurar o poeta àquela hora? Lembrou-se que tinha umas
encomendas do homem das odes e foi abrir a porta disposto a ouvir resignado a
muito plausível sarabanda que ele lhe vinha naturalmente pregar. Mas, ó pasmo!
mal o poeta abriu a porta, eis que uma sílfide, uma criatura celestial,
vaporosa, fantástica, trajando vestes alvas, nem bem de pano, nem bem de
névoas, uma coisa entre as duas espécies, pés alígeros, rosto sereno e
insinuante, olhos negros e cintilantes, cachos louros do mais leve e delicado
cabelo, a caírem-lhe graciosos pelas espáduas nuas, divinas, como as tuas, ó
Afrodite! eis que uma criatura assim invade o aposento do poeta e, estendendo a
mão, ordena-lhe que feche a porta e tome assento à mesa.
Tito estava assombrado.
Maquinalmente voltou ao seu lugar sem tirar os olhos da visão. Esta sentou-se
defronte dele e começou a brincar com a galga que dava mostras de não usado
contentamento. Passaram-se nisto dez minutos; depois do que a peregrina
singular criatura cravando os seus olhos nos do poeta, perguntou-lhe com uma
doçura de voz nunca ouvida:
— Em que pensas, poeta? Pranteias
algum amor mal parado? Sofres com a injustiça dos homens? Dói-te a desgraça
alheia, ou é a própria que te sombreia a fronte?
Esta indagação era feita de um
modo tão insinuante que Tito sem inquirir o motivo de curiosidade, respondeu
imediatamente:
— Penso na injustiça de Deus.
— É contraditória a expressão;
Deus é a justiça.
— Não é. Se fosse teria repartido
irmãmente a ternura pelos corações e não consentiria que um ardesse inutilmente
pelo outro. O fenômeno da simpatia devia ser sempre recíproco, de maneira que a
mulher não pudesse olhar com frieza para o homem, quando o homem levantasse
olhos de amor para ela.
— Não és tu quem fala, poeta. É o
teu amor-próprio ferido pela má paga do teu afeto. Mas de que te servem as
musas? Entra no santuário da poesia, engolfa-te no seio da inspiração,
esquecerás aí a dor da chaga que o mundo te abriu.
— De que precisas tu para dar
vida à poesia e à inspiração?
— Preciso do que me falta... e
falta-me tudo.
— Tudo? És exagerado. Tens o selo
com que Deus te distinguiu dos outros homens e isso te basta. Cismavas em
deixar esta terra?
— Vamos, disse a visão.
E ela tomou-o nos braços, subiu
com ele até o teto, que se rasgou, e passaram ambos, visão e poeta. A
tempestade tinha, como por encanto, cessado; estava o céu limpo, transparente,
luminoso, verdadeiramente celeste, enfim. As estrelas fulgiam com a sua melhor luz,
e um luar branco e poético caía sobre os telhados das casas e sobre as flores e
a relva dos campos.
Os dois subiram.
Isto passou rápido pela mente do
poeta. Como disse, ele não pensava; ia subindo sem olhar para a terra. E para
que olharia para a terra? A visão não podia conduzi-lo senão ao céu.
Caminhando, os objetos, até então
vistos através de um nevoeiro, tomavam aspecto de coisas reais. Tito pôde ver
então que se achava em uma nova terra, a todos os respeitos estranha: o
primeiro aspecto vencia ao que oferece a poética Istambul ou a poética Nápoles.
Mais entravam, porém, mais os objetos tomavam o aspecto da realidade. Assim chegaram
à grande praça onde estavam construídos os reais paços. A habitação régia era,
por assim dizer, uma reunião de todas as ordens arquitetônicas, sem excluir a
chinesa, sendo de notar que esta última fazia não mediana despesa na estrutura
do palácio.
Tito quis sair da ânsia em que
estava por saber em que país acabava de entrar, e aventurou uma pergunta à sua
companheira.
— Estamos no país das Quimeras,
respondeu ela.
— No país das Quimeras?
— Das Quimeras. País para onde
viaja três quartas partes do gênero humano, mas que não se acha consignado nas
tábuas da ciência.
Tito contentou-se com a
explicação. Mas refletiu sobre o caso. Por que motivo iria parar ali? A que era
levado? Estava nisto quando a fada o advertiu de que eram chegados à porta do
palácio. No vestíbulo havia uns vinte ou trinta soldados que fumavam em grosso
cachimbo de escuma do mar, e que se embriagavam com outros tantos padixás, na
contemplação dos novelos de fumo azul e branco que lhe saíam da boca. À entrada
dos dois houve continência militar. Subiram pela grande escadaria, e foram ter
aos andares superiores.
— Vamos falar aos soberanos,
disse a companheira do poeta. Atravessaram muitas salas e galerias. Todas as
paredes, como no poema de Dinis, eram forradas de papel prateado e lantejoulas.
Afinal penetraram na grande sala.
O gênio das bagatelas, de que fala Elpino, estava sentado em um trono de
casquinha, tendo de ornamento dois pavões, um de cada lado. O próprio soberano
tinha por coifa um pavão vivo, atado pelos pés a uma espécie de solidéu, maior
que os dos nossos padres, o qual por sua vez ficava firme na cabeça por meio de
duas largas fitas amarelas, que vinham atar-se debaixo dos reais queixos. Coifa
idêntica adornava a cabeça dos gênios da corte, que correspondem aos viscondes
deste mundo e que cercavam o trono do brilhante rei. Todos aqueles pavões, de
minuto a minuto, armavam-se, apavoneavam-se, e davam os guinchos do costume.
Quando Tito entrou na grande sala
pela mão da visão, houve um murmúrio entre os fidalgos quiméricos. A visão
declarou que ia apresentar um filho da terra. Seguiu-se a cerimônia da
apresentação, que era uma enfiada de cortesias, passagens e outras coisas
quiméricas, sem excluir a formalidade do beija-mão. Não se pense que Tito foi o
único a beijar a mão ao gênio soberano; todos os presentes fizeram o mesmo,
porque, segundo Tito ouviu depois, não se dá naquele país o ato mais
insignificante sem que esta formalidade seja preenchida.
Depois da cerimônia da
apresentação perguntou o soberano ao poeta que tratamento tinha na terra, para
dar-se-lhe cicerone correspondente.
— Eu, disse Tito, tenho, se
tanto, uma triste Mercê.
— Só isso? Pois há de ter o
desprazer de ser acompanhado pelo cicerone comum. Nós temos cá a Senhoria, a
Excelência, a Grandeza, e outras mais; mas, quanto à Mercê, essa, tendo
habitado algum tempo este país, tornou-se tão pouco útil que julguei melhor
despedi-la.
A este tempo a Senhoria e a
Excelência, duas criaturas empertigadas, que se haviam aproximado do poeta,
voltaram-lhe as costas, encolhendo os ombros e deitando-lhe um olhar de través
com a maior expressão de desdém e pouco caso.
Tito quis perguntar à sua
companheira o motivo deste ato daquelas duas quiméricas pessoas; mas a visão
puxou-lhe pelo braço, e fez-lhe ver com um gesto que estava desatendendo ao
Gênio das Bagatelas, cujos sobrolhos se contraíram, como dizem os poetas
antigos que se contraíam os de Júpiter Tonante.
Neste momento entrou um bando de
moçoilas frescas, lépidas, bonitas e louras... oh! mas de um louro que se não
conhece entre nós, os filhos da terra! Entraram elas a correr, com a agilidade
de andorinhas que voam; e depois de apertarem galhofeiramente a mão aos gênios
da corte foram ao Gênio soberano, diante de quem fizeram umas dez ou doze mesuras.
Quem eram aquelas raparigas? O
meu poeta estava de boca aberta. Indagou da sua guia, e soube. Eram as Utopias
e as Quimeras que iam da terra, onde haviam passado a noite na companhia de
alguns homens e mulheres de todas as idades e condições.
As Utopias e as Quimeras foram
festejadas pelo soberano, que se dignou sorrir-lhes e bater-lhes na face. Elas
alegres e risonhas receberam os carinhos reais como coisa que lhes era devida;
e depois de dez ou doze mesuras, repetição das anteriores, foram-se da sala,
não sem abraçarem ou beliscarem o meu poeta, que olhava espantado para elas sem
saber por que se tornara objeto de tanta jovialidade. O seu espanto crescia de
ponto quando ouvia a cada uma delas esta expressão muito usada nos bailes de
máscaras: Eu te conheço!
Depois que saíram todas, o Gênio
fez um sinal, e toda a atenção concentrou-se no soberano, a ver o que ia
sair-lhe dos lábios. A expectativa foi burlada, porque o gracioso soberano
apenas com um gesto indicou ao cicerone comum o misero hóspede que daqui tinha
ido. Seguiu-se a cerimônia da saída, que durou longos minutos, em virtude das
mesuras, cortesias e beija-mão do estilo.
Os três, o poeta, a fada
condutora e o cicerone, passaram à sala da rainha. A real senhora era uma
pessoa digna de atenção a todos os respeitos; era imponente e graciosa; trajava
vestido de gaze e roupa da mesma fazenda, borzeguins de cetim alvo, pedras
finas de todas as espécies e cores, nos braços, no pescoço e na cabeça; na cara
trazia posturas finíssimas, e com tal arte, que parecia haver sido corada pelo
pincel da natureza; dos cabelos recendiam ativos cosméticos e delicados óleos.
Tito não disfarçou a impressão
que lhe causava um todo assim. Voltou-se para a companheira de viagem e
perguntou como se chamava aquela deusa.
— Não a vê? respondeu a fada; não
vê as trezentas raparigas que trabalham em torno dela? Pois então? é a Moda,
cercada de suas trezentas belas, caprichosas filhas.
A estas palavras Tito lembrou-se
do Hissope. Não duvidava já de que estava no país das Quimeras; mas, raciocinou
ele, para que Dinis falasse de algumas destas coisas, é preciso que cá tivesse
vindo e voltasse, como está averiguado. Portanto, não devo recear de cá ficar
morando eternamente. Descansado por este lado, passou a atentar para os
trabalhos das companheiras da rainha; eram umas novas modas que se estavam
arranjando, para vir a este mundo substituir as antigas.
Houve apresentação com o
cerimonial do estilo. Tito estremeceu quando pousou os lábios na mão fina e
macia da soberana; esta não reparou, porque tinha na mão esquerda um psyché,
onde se mirava de momento em momento.
Impetraram os três licença para
continuar a visita do palácio e seguiram pelas galerias e salas do alcáçar.
Cada sala era ocupada por um grupo de pessoas, homens ou mulheres, algumas
vezes mulheres e homens, que se ocupavam nos diferentes misteres de que estavam
incumbidos pela lei do país, ou por ordem arbitrária do soberano. Tito
percorria essas diversas salas com o olhar espantado, estranhando o que via,
aquelas ocupações, aqueles costumes, aqueles caracteres. Em uma das salas um
grupo de cem pessoas ocupava-se em adelgaçar uma massa branca, leve e balofa.
Naturalmente este lugar é a ucharia, pensou Tito; estão preparando alguma
iguaria singular para o almoço do rei. Indagou do cicerone se havia acertado. O
cicerone respondeu:
— Não, senhor; estes homens estão
ocupados em preparar massa cerebral para um certo número de homens de todas as
classes: estadistas, poetas, namorados, etc.; serve também a mulheres. Esta
massa é especialmente para aqueles que, no seu planeta, vivem com verdadeiras
disposições do nosso país, aos quais fazemos presentes deste elemento
constitutivo.
— É massa quimérica?
— Da melhor que se há visto até
hoje.
— Pode ver-se?
O cicerone sorriu-se; chamou o
chefe da sala, a quem pediu um pouco de massa. Este foi com prontidão ao
depósito e tirou uma porção que entregou a Tito. Mal o poeta a tomou das mãos
do chefe desfez-se a massa, como se fora composta de fumo. Tito ficou confuso;
mas o chefe, batendo-lhe no ombro:
— Vá descansado, disse; nós temos
à mão matéria-prima; é da nossa própria atmosfera que nos servimos; e a nossa
atmosfera não se esgota.
Este chefe tinha uma cara
insinuante, mas, como todos os quiméricos, era sujeito a abstrações, de modo
que Tito não pôde arrancar-lhe mais uma palavra, porque ele, ao dizer as
últimas, começou a olhar para o ar e a contemplar o vôo de uma mosca.
Este caso atraiu os companheiros
que se chegaram a ele e mergulharam-se todos na contemplação do alado inseto.
Os três continuaram caminho.
Mais adiante era uma sala onde
muitos quiméricos, à roda de mesas, discutiam os diferentes modos de inspirar
aos diplomatas e diretores deste nosso mundo os pretextos para encher o tempo e
apavorar os espíritos com futilidades e espantalhos. Esses homens tinham ares
de finos e espertos. Havia ordem do soberano para não se entrar naquela sala em
horas de trabalho; um guarda estava à porta. A menor distração daquele
congresso seria considerada uma calamidade pública.
Andou o meu poeta de sala em
sala, de galeria em galeria, aqui, visitando um museu, ali, um trabalho ou um
jogo; teve tempo de ver tudo, de tudo examinar, com atenção e pelo miúdo. Ao
passar pela grande galeria que dava para a praça, viu que o povo, reunido
embaixo das janelas, cercava uma forca. Era uma execução que ia ter lugar.
Crime de morte? perguntou Tito, que tinha a nossa legislação na cabeça. Não,
responderam-lhe, crime de lesa-cortesia. Era um quimérico que havia cometido o crime
de não fazer a tempo e com graça uma continência; este crime é considerado
naquele país como a maior audácia possível e imaginável. O povo quimérico
contemplou a execução como se assistisse a um espetáculo de saltimbancos, entre
aplausos e gritos de prazer.
Entretanto era hora do almoço
real. À mesa do gênio soberano só se sentavam o rei, a rainha, dois ministros,
um médico e a encantadora fada que havia levado o meu poeta àquelas alturas. A
fada, antes de sentar-se à mesa, implorou do rei a mercê de admitir Tito ao
almoço; a resposta foi afirmativa; Tito tomou assento. O almoço foi o mais
sucinto e rápido que é possível imaginar. Durou alguns segundos, depois do que
todos se levantaram, e abriu-se mesa para o jogo das reais pessoas; Tito foi
assistir ao jogo; em roda da sala havia cadeiras, onde estavam sentadas as
Utopias e as Quimeras; às costas dessas cadeiras empertigavam-se os fidalgos
quiméricos, com os seus pavões e as suas vestiduras de escarlate. Tito
aproveitou a ocasião para saber como é que o conheciam aquelas assanhadas
raparigas. Encostou-se a uma cadeira e indagou da Utopia que se achava nesse
lugar. Esta impetrou licença, e depois das formalidades do costume, retirou-se
a uma das salas com o poeta, e aí perguntou-lhe :
— Pois deveras não sabes quem
somos? Não nos conheces?
— Não as conheço, isto é,
conheço-as agora, e isso dá-me verdadeiro pesar, porque quisera tê-las
conhecido há mais tempo.
— Oh! sempre poeta!
— É que deveras são de uma
gentileza sem rival. Mas onde é que me viram?
— Em tua própria casa.
— Oh!
— Não te lembras? À noite,
cansado das lutas do dia, recolhes-te ao aposento, e aí, abrindo velas ao
pensamento, deixas-te ir por um mar sereno e calmo. Nessa viagem acompanham-te
algumas raparigas... somos nós, as Utopias, nós, as Quimeras.
Tito compreendeu afinal uma coisa
que se lhe estava a dizer havia tanto tempo. Sorriu-se, e cravando os seus
belos e namorados olhos nos da Utopia que tinha diante de si, disse:
— Ah! sois vós, é verdade!
Consoladora companhia que me distrai de todas as misérias e pesares. É no seio
de vós que eu enxugo as minhas lágrimas. Ainda bem! Conforta-me ver-vos a todas
de face e embaixo de forma palpável.
— E queres saber, tornou a
Utopia, quem nos leva a todas para tua companhia? Olha, vê.
O poeta voltou a cabeça e viu a
peregrina visão, sua companheira de viagem.
— Ah! é ela! disse o poeta.
— É verdade. É a loura Fantasia,
a companheira desvelada dos que pensam e dos que sentem.
A Fantasia e a Utopia
entrelaçaram-se as mãos e olhavam para Tito. Este, como que enlevado, olhava
para ambas. Durou isto alguns segundos; o poeta quis fazer algumas perguntas,
mas quando ia falar reparou que as duas se haviam tornado mais delgadas e
vaporosas. Articulou alguma coisa; porém, vendo que elas iam ficando cada vez
mais transparentes, e distinguindo-lhes já pouco as feições, soltou estas
palavras: — Então! que é isto? por que se desfazem assim? — Mais e mais as
sombras desapareciam, o poeta correu à sala do jogo; espetáculo idêntico o esperava;
era pavoroso; todas as figuras se desfaziam como se fossem feitas de névoa.
Atônito e palpitante, Tito percorreu algumas galerias e afinal saiu à praça;
todos os objetos estavam sofrendo a mesma transformação. Dentro de pouco Tito
sentiu que lhe faltava apoio aos pés e viu que estava solto no espaço.
Nesta situação soltou um grito de
dor.
Fechou os olhos e deixou-se ir
como se tivesse de encontrar por termo de viagem a morte.
Era na verdade o mais provável.
Passados alguns segundos, Tito abriu os olhos e viu que caía perpendicularmente
sobre um ponto negro que lhe parecia do tamanho de um ovo. O corpo rasgava como
um raio o espaço. O ponto negro cresceu, cresceu, e cresceu até fazer-se do
tamanho de uma esfera. A queda do poeta tinha alguma coisa de diabólica; ele
soltava de vez em quando um gemido; o ar, batendo-lhe nos olhos, obrigava-o a
fechá-los de instante a instante. Afinal, o ponto negro que havia crescido,
continuava a crescer, até aparecer ao poeta com o aspecto da terra. É a terra!
disse Tito consigo.
Creio que não haverá expressão
humana para mostrar a alegria que sentiu aquela alma, perdida no espaço, quando
reconheceu que se aproximava do planeta natal. Curta foi a alegria. Tito
pensou, e pensou bem, que naquela velocidade quando tocasse em terra seria para
nunca mais levantar. Teve um calafrio: viu a morte diante de si, e encomendou a
alma a Deus. Assim foi, foi, ou antes, veio, veio, até que — milagre dos
milagres! — caiu sobre uma praia, de pé, firme como se não houvesse dado aquele
infernal salto.
A primeira impressão, quando se
viu em terra, foi de satisfação; depois tratou de ver em que região do planeta
se achava; podia ter caído na Sibéria ou na China; verificou que se achava a
dois passos de casa. Apressou-se o poeta e voltar aos seus pacíficos lares.
A vela estava gasta; a galga,
estendida sob a mesa, tinha os olhos fitos na porta. Tito entrou e atirou-se
sobre a cama, onde adormeceu, refletindo no que lhe acabava de acontecer.
Desde então Tito possui um olhar
de lince, e diz, à primeira vista, se um homem traz na cabeça miolos ou massa
quimérica. Devo declarar que poucos encontram que não façam provisão desta
última espécie. Diz ele, e tenho razões para crer, que eu entro no número das
pouquíssimas exceções. Em que pese aos meus desafeiçoados, não posso retirar a
minha confiança de um homem que acaba de fazer tão pasmosa viagem, e que pôde
olhar de face o trono cintilante do rei das Bagatelas.
FIM
sexta-feira, 7 de setembro de 2012
pelo ANO DE PORTUGAL NO BRASIL
oficial (e auspiciosamente) aberto neste 07.09 o "Ano de Portugal no Brasil",a mim motivo de regozijo e ,que muito me toca devido a minhas afetivas e efetivas ligações com Portugal.
ligações de longa data em torno do apreço pela literatura,por extensão da cultura, portuguesa ;e no presente em torno da literatura luso-brasileira que ora se materializam na preparação de um livro,decorrente de estudo específico,acerca de "Machado de Assis e os portugueses",e na elaboração deste artigo
"À volta de Machado de Assis e os portugueses : apontamentos para um estudo"
À volta de Machado de Assis e os
portugueses : apontamentos para
um estudo [1]
“(...) Portugal não teve [apenas] influência, ele está presente [no
Brasil]. Os portugueses suscitam
desdobramentos delicados (...) ;são
eles próprios engrenagens vivas e sensíveis. Trata-se de recolher os elementos
que permitirão escrever a história interatlântica do mundo lusofalante no
século XIX. Em conseqüência,o conhecimento do século XIX português e
especialmente a transição do romantismo ao realismo serão bem esclarecidos,já
que as duas literaturas vivem em simbiose.”
J.M-Massa, A
juventude de Machado de Assis, 1965
A priori, convém frisar ter-me
debruçado ao estudo das relações e interações luso-machadianas., per se nunca até então desenvolvido, nos
termos e no enfoque e sob o escopo deste
que agora se propõe, movido pelo detectar da extrema, crucial, importância
destes quer na vida pessoal quer nas formação e constituição literárias e na
construção da obra do escritor brasileiro; e mais : no embasamento e no
engajamento político, na fundamentação de seu pensamento ideológico – este, na
verdade, um aspecto pouquíssimo notado e conhecido, e raramente estudado.
Algumas dos elementos aqui
expostos entendo serem de conhecimento, em maior ou menor grau, por parte de
estudiosos, pesquisadores, cultores e admiradores das literaturas portuguesa e
brasileira; procuro no entanto apresentar e enfatizar determinadas considerações,observações
e comentários que, menos comum e frequentemente apontados,explanados e analisados
no enfoque do presente tema , julgo extremamente relevantes para o melhor discernimento e imprescindível
enriquecimento de estudos a
respeito dessas relações e
interações..
Quais
sejam – essencialmente expostos e enfatizados no estudo em tela, dotando-o de
especial significância:
1.o
porquê de os portugueses terem exercido papel
e relevância maiores e mais decisivos do que quaisquer outras influências e
orientações estrangeiras – tanto nas formação e constituição literárias
quanto,em especial, no embasamento político-ideológico de Machado de Assis;
2.
o quanto autores, obras e textos portugueses,agentes
da formação de Machado de Assis, por ele foram ‘transferidos’ aos leitores por via das inúmeras citações e
alusões em seus escritos(pela primeira vez aqui recenseadas,mapeadas e
formalizadas);
3.uma
reflexão acerca da postura ,contraditória e ambígua, dos primeiros românticos
brasileiros -- exceção feita a Machado de Assis
-- empenhados então no projeto de afirmação da nacionalidade literária e
cultural , com relação aos portugueses.
O aludido estudo insere-se no
projeto amplo, abrangente e genérico
acerca das influências e orientações estrangeiras em Machado de Assis ( a par
dos portugueses, os franceses, os ingleses, os alemães, os gregos, os latinos,
espanhóis e italianos), a oferecer subsídios valiosos para os estudos de
Literatura Comparada, um dos basilares approach
que entendo devesse inexoravelmente imprimir a meus programas investigativos, analíticos
e reflexivos de obras, textos e autores da literatura brasileira dita clássica
, vale dizer, examiná-los e interpretá-los à luz das injunções e conexões de
origem estrangeira recebidas por eles e
atuantes sobre suas produções literárias (outro dos vieses seria a História,
sob as lentes e prismas da qual se submetem clamorosamente todas as
manifestações e realizações de literatura, por extensão artísticas) – e nesse cenário matricial constatei, ao chegar e
aprofundar no exame dos lusos, a (não vacilo em dizer incomparável) relevância
dos mesmos com relação a Machado de Assis.
Cabe, nesse particular, uma digressão – fundamentada, por
certo – no que tange às relações machadianas com os elementos de cultura
estrangeira, de resto preponderantes no
Brasil oitocentista (e bastante atuantes pelos ciclos seguintes) : ainda que a
eles tenha-se referido como “invasões culturais”,
Machado de Assis, qual antecipador da
antropofagia modernista de 1922 (reporte-se a Oswald de Andrade et allii) assimilou-os, ‘deglutiu-os’,
‘digeriu-os’ e ‘expeliu-os’ incorporando à sua obra, à sua escrita e à sua
linguagem literária e dotando estas ao mesmo tempo (como sabemos) de
brasilidade e universalidade, de localismo e universalismo.
Convém aqui esclarecer o quanto
de significância para um ‘desenho’ de marcantes influências literárias,
intelectuais e culturais quer para a
formação do escritor quer para efeito de seu contributo à formação de
seu leitor (e para o leitorado brasileiro do século XIX ) detêm as leituras, fosse nos livros de sua posse mantidos na
biblioteca pessoal fosse nas consultas realizadas por ele em bibliotecas públicas
e particulares,em gabinetes de leitura em entidades e instituições, bem como as
citações e referências expressas em seus escritos. Os acurados, metódicos,
rigorosos levantamento e mapeamento desses elementos tornam-se
obrigatórios para constituição
informativa e reflexiva de cenários e vetores das orientações estrangeiras em Machado de Assis
– e foram devidamente (como não poderia ser de outro modo) utilizados e
aplicados no caso luso-machadiano.
*
Notório fato: não obstante a preponderância dos franceses nesse cenário
de influências estrangeiras, os portugueses -- por seus autores e obras lidos e
consultados por Machado, naqueles que com ele conviveram no Rio de Janeiro,
naqueles intensamente citados, referenciados em sua obra -- foram absolutamente
decisivos na vida, quer pessoal, social e conjugal, quer intelectual, em suas
formação e constituição literárias e em sua obra, na edificação de sua
linguagem, sua escrita e estilo narrativo, e – vale reiterar - no embasamento
político-ideológico-filosófico de Machado de Assis.
A solidez e a característica
genuína dos vínculos machadianos com os portugueses são nitidamente expressas
por elementos que se estendem de sua
própria origem familiar aos fortes e intensos laços de amizade com lusitanos
então residentes no Rio de Janeiro, de seu casamento às leituras que lhe acompanharam por toda a vida,
de sua formação literária e cultural às
inúmeras (e significativas) citações,alusões, referências e recorrências a
autores e obras lusitanos em sua ficção e não-ficção.
No âmbito de seus vínculos
familiares e conjugais, emerge a constatação do quanto mulheres de origem portuguesa constituíram-se não
apenas em objeto de especial afeto por parte de Machado – até porque exerceram
marcante papel em diversos momentos de sua vida -- mas sobremodo contribuíram
para a construção de sua linguagem, no
que tange a prosódia, sintaxe, léxico e semântica, o que por extensão
incorporou-se à própria linguagem
literária machadiana.
Sob outro viés, vale a pena
considerar que, em parte decorrente
desses originários vínculos familiares, ao mesmo tempo guiado por um vetor sob o
escopo maior de sua iniciação no embasamento literário-cultural, Machado desde
cedo passou a conhecer autores e obras lusitanos, especialmente os clássicos da
língua. Jovem, de parcos recursos financeiros, valeu-se na freqüência regular,
contumaz a bibliotecas públicas e privadas, e de um acurado autodidatismo em
suas leituras de formação, realizadas mormente no (preponderante) Real Gabinete Português de
Leitura do Rio de Janeiro, também no
Liceu Literário Português, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, no
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Com o tempo, foi formando
gradativamente – e consistentemente – sua biblioteca pessoal, na qual se não
majoritários em quantidade autores e obras portugueses se fizeram notar por
parâmetros de alta representatividade literário-bibliográfica.
No extenso painel de seus
interesses literários e suas leituras, Machado de Assis constituiu-se, per se, em elo decisivo de contato entre
as culturas brasileira e portuguesa na segunda metade do séc. XIX; e, acrescido
pelos vínculos familiares de origem, bem
como os de eleição afetiva e de interesse intelectual que manteve ao longo da
vida com membros da colônia portuguesa radicados no Rio de Janeiro, faziam o escritor circular dentro de um
ambiente luso-brasileiro,de marcantes
ecos em seus próprios escritos.
È extenso, como extremamente
significativo, o elenco de fraternas amizades cultivadas, desde sua juventude,
com escritores portugueses recém transferidos para o Rio de Janeiro (estima-se
que em 1852, por exemplo, viviam cerca
de 30 mil na cidade), atraídos pelo ambiente acolhedor e de alta efervescência cultural, mas também de
cunho filosófico-ideológico, aqui criado desde 1837 por aqueles que,
afastando-se do levante do Porto, inclusive fundaram o Real Gabinete Português
de Leitura.
Pelos anos 1850 encontravam-se
radicados no Rio de Janeiro literatos como Francisco Gonçalves Braga, Augusto
Emílio Zaluar, Carlos Augusto de Sá, Faustino Xavier de Novais, Francisco Ramos
Paz, Ernesto Cybrão, Reinaldo Carlos Montoro, Manuel de Melo, José Feliciano de
Castilho, Antônio Feliciano de Castilho. Todos de alguma influência nas rodas
literárias e nos ambientes letrados da capital brasileira – e todos de capital
relevância na vida literária e intelectual de Machado.
.
Todos eles -- destaque absoluto a Zaluar e Xavier de Novais, além de Antonio
Feliciano de Castilho -- encontram-se de alguma forma presentes nos escritos de
Machado, atestando estreita interlocução literária, o que, de resto, atesta o
clamoroso fato de que nenhum escritor ou literato brasileiro, à época,
aproximou-se e identificou-se de tal forma, e essência, como Machado de Assis
junto aos portugueses.
Com efeito, foi exatamente por
conta da fértil, profícua, intensa
convivência física com esses que Machado tinha como “amigos fraternos”
que realça e enfatiza – como se
asseverou anteriormente – a importância crucial dos , muito maior do que a dos
franceses,ingleses, só para citar dois exemplos de preponderantes influências
em Machado
Relacionamentos, convivências e
atividades intelectuais em comum exercidos e praticados em torno, primeiramente
– ainda que em escala incipiente – da Sociedade Petalógica (criada e
incentivada por Paula Brito),em 1854-55,
na qual estavam Braga,Zaluar e Garção; em seguida, já em 1857, no escritório de
Caetano Filgueiras -- que escreveria o famoso prefácio à 1ª. edição da
coletânea poética Crisálidas, de
Machado -- onde inclusive constituiu-se o denominado “Grupo dos Cinco”,
composto de Filgueiras,Braga,.os brasileiros Casimiro de Abreu --que vivera bom
tempo em Lisboa - Cândido Macedo Junior,e Machado ; depois, um novo
grupo,unidos por traços ideológicos comuns,de elementos democráticos e
liberais, a fornecerem o fermento para uma nova postura política de Machado
(que a sustentaria daí por diante, ao
longo do tempo) – tendo como figura
central o proscrito francês Charles Ribeyrolles, e onde estreitou seu
relacionamento com Augusto Emilio Zaluar, Reinaldo Carlos Montoro,Francisco
Ramos Paz, Remigio de Sena Pereira (estes três iriam traduzir, ao lado de
Machado e Manuel Antonio de Almeida, a obra de Ribeyrolles, sob supervisão e
acompanhamento deste, Le Brèsil
Pittoresque)-- todos mais tarde
participantes e atuantes, com Machado, no (importantíssimo) jornal O Parahyba e no Correio
Mercantil. [2]
Mas também exercidos, os
relacionamentos e convivências, nos saraus literários; nas reuniões no Grêmio
Literário Português, no Retiro Literário Português (uma dissidência do Grêmio),
na Arcádia Fluminense (onde, em 1864, Machado apresentou sua peça “Os deuses de
casaca”); e ao ensejo de dois eventos
bastante significativos : o centenário (aliás, mais comemorado no Brasil que em
Portugal) de nascimento de Bocage, em
1865, e o tricentenário de nascimento de Camões, 1880, iniciativa do Gabinete
Português de Leitura (acontecimento inclusive de intensa participação popular
no Rio de Janeiro) – quando Machado apresentou a peça,escrita especialmente
para a ocasião, “Tu,só tu puro amor”
E, importante notar, em distintos
jornais, de relevância – cada um por suas circunstâncias – no contexto das
relações lusas de Machado: A Marmota,
em 1855-56 (que publicava transcrições de obras portuguesas, como “Folhas
caídas”, de Garret, poemas de João de Lemos e Antonio Dinis, e outros); O Parahyba, de Petrópolis, 1858-59
(jornal progressista, avançado para seu tempo, de relevância ímpar na história
jornalística, editorial e literária brasileiras – até aqui não devidamente
estudado), criado por Zaluar, editorialista e seu redator-chefe,e contando com
Carlos Montoro, Ramos Paz e Machado ; Correio
Mercantil,.1858-59, no qual Machado
conheceu Faustino Xavier de Novais, e publicou,entre outros textos, o artigo “O Jornal e o Livro”, marco de um
posicionamento dialético-político machadiano, cuja (escreveu ele) “idéia
pertenceu ao sr. Reinaldo Carlos [Montoro]” –
artigo contendo trecho de
manifestação de clara adesão aos princípios
democratas e republicanos;[3] ; Diário do Rio de Janeiro, 1861-62 – nele
(com Machado), Ramos Paz e Sena Pereira ;
O Futuro, 1862-63, criado e dirigido
por Faustino Xavier de Novais, o primeiro – e pode-se dizer principal, se não
único -- jornal explicita e essencialmente luso-brasileiro, de resto expresso
formalmente no texto de editorial de seu
1º.número, a 15.09.1862, e que inclusive abrigou crônicas machadianas de
teor político (e de outros timbres)
A rigor, toda esse período de
cerca de oito anos na vida de Machado – desde meados da década de 1850, as
atuações nos aludidos jornais, em todos eles ‘cercado’ de portugueses – registra e retrata uma espécie de ‘pêndulo’
na postura,no pensamento, nas opiniões.comentários e manifestações literárias,
oscilando entre a convivência e intimidade em grupos de literatos e o engajamento,
entre participação efetiva,em termos de comentários incisivos, nos
acontecimentos e a criação artística, procurando impor certa ‘personalidade
filosófica’, uma independência de pensamento não submisso a doutrinas e dogmas.
Sempre em torno da convivência com os
portugueses.
Como portugueses marcaram literariamente o Machado escritor ?
Primeiramente, por meio dos
autores e obras clássicos, quer antigos e canônicos quer contemporâneos a ele,
dos quais foi Machado um persistente leitor, entre 39 volumes armazenados em sua biblioteca(ou do que
restou dela, bastante diluída após sua morte) – como Almeida Garret, Alexandre
Herculano, Antonio F.de Castilho; José F. de Castilho, Teophilo Braga, Alexandre Herculano,Oliveira
Martins,João de Barros, Camões, Frei Amador Arrais,padre João Lucena, Garcia de
Resende, Frei Luís de Sousa, João de Deus, Eça de Queirós, Almeida Garrett,
Gomes de Amorim, Rebelo da Silva, Antero Figueiredo, D. Antonio Costa, fr. J.de
Santa Rita Durão, J. P. Oliveira
Martins, padre João Lucena. Vasco da Gama -- e aqueles consultados, uns
regularmente outros especifica e episodicamente, nos acervos públicos e
privados que freqüentava -- entre eles, Gil Vicente; Bernardim Ribeiro; Sá de
Miranda; João de Barros; Fernão Mendes Pinto; Duarte Nunes de Leão; frei Luís
de Sousa; Francisco Rodrigues Lobo ;padre Antônio Vieira ;padre Manuel
Bernardes.
Às intensas e perenes leituras e consultas nas bibliotecas
e acervos bibliográficos e à estreita e criativa convivência com literatos
lusos estabelecidos no Rio de Janeiro, acoplam-se, por sua extrema
significância no retrato dessas relações, as profusas citações e recorrências aos portugueses em
toda a obra machadiana (devidamente mapeadas e organizadas, no aludido estudo
acerca das influências e orientações estrangeiras em Machado de Assis, em raisonnés – o que, mister enfatizar, identificam os teores,graus e
influências de autores,obras e textos lusos em sua genealogia literária concomitantemente
apontam para vetores na
constituição,hábitos,gostos e perfis de leitores a sua época, vale dizer
serem vistas como fontes de informação e
conhecimento dessas referências autorais e bibliográficas a seus leitores, por
extensão ao leitor brasileiro de seu tempo : no que registra e faz aparecer em
seus textos, Machado os ‘apresenta’ e transmite aos que o lêem. Há um claro, relevante
processo de ‘transferência’ e transmissão de conhecimento literário,
bibliográfico,cultural, histórico, político, etc, de insofismável formação
cognitiva e de modulação de padrões de leitura da época.
Neste particular, tão quantitativamente extenso quanto
qualitativamente significativo é o elenco de autores portugueses, os quais a par de exercerem marcante influência
em sua formação literária, Machado de
Assis informou e difundiu junto a seus leitores. Desde autores mais antigos –
como Joham Zorro e D. Dinis – a Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Sá de
Miranda, João de Barros, D. João de Castro, Damião de Góis, Fernão Mendes
Pinto, Pêro de Andrade Caminha, Antônio
Ferreira, Francisco de Andrade, Diogo do Couto, Frei Luís de Sousa, Damião de
Góis, Antônio José, o Judeu, Antônio Vieira, Francisco Manuel de Melo, Manuel
Bernardes, Antônio Caetano de Sousa, Antônio José da Silva, Correia
Garção, Luís, Manuel de Figueiredo, Cruz
e Silva,Mendes Leal, Rebelo da Silva, Camilo Castelo Branco, Ernesto Biester,
João de Deus, Tomás Ribeiro, Ramalho Ortigão,Teófilo Braga, Eça de Queirós,
Guerra Junqueiro.
Hegemônico foi Luis de Camões (quem, de resto, pode-se
considerar, no cômputo geral das menções e referências de Machado, somente
superado por Shakespeare) -- e Os
Lusíadas, a obra mais citada por
Machado depois da Bíblia ; e mais
Almeida Garret, Alexandre Herculano,Bocage, Antonio F. de Castilho, Antonio
.Dinis da Cruz e Silva, Nicolau Tolentino.
O papel e influências de poetas portugueses na formação de Machado de Assis,
inserido de resto na própria tradição poética luso-brasileira da época, têm
exemplos cristalinos em Camões,Garret e Castilho, que marcaram forte e intensamente a poética
machadiana, bem como um daqueles co-viventes no Rio de Janeiro, Francisco
Gonçalves Braga-- a quem Machado designou como “meu primeiro mestre”. A se
destacar também as influências significativas de Alexandre Herculano – ao lado
de Garret, considerado por Machado como modelo na prosa -- e João de Barros na
constituição de seu conhecimento histórico.
Almeida Garret, mister enfatizar, além da acentuada
influência temática e estilística na poética machadiana, teve seu “Bosquejo da
História da Poesia e Língua Portuguesa”, de 1827, estudo fundamental para a
história da literatura no Brasil, a apontar caminhos da emancipação literária –
o que viria a se constituir na égide do movimento deflagrado na década de 1830
por Gonçalves de Magalhães e José de Alencar, em prol de um “nacionalismo
literário brasileiro” (que, aliás, propicia
a reflexão exposta adiante) –
como forte inspiração para as reflexões
de Machado acerca da literatura brasileira, expressas nos ensaios “O passado, o
presente e o futuro da literatura brasileira”(1858), “Instinto de
nacionalidade”(1873) e “A nova geração”(1879), e sua obra Viagens da minha terra como uma das peças que moldaram,no teor da
sátira menipéica-luciânica (ao lado das obras de Sterne,Diderot e Xavier de
Maistre), a célebre inflexão machadiana
no início da década de 1880.
A se arrolar ainda Camilo Castelo Branco, que inspirou
Machado em certos recursos narrativos, como as digressões metaliterárias, as
interferências do narrador em diálogo com o leitor, o uso da ironia (já foram
apontados elementos da novela Coração ,cabeça e estômago: uma estética da
ambiguidade, de Camilo, em Memórias
póstumas de Brás Cubas).
Na ‘seara’ teatral de Machado, de inquestionável
influência foi Antônio José da Silva, a quem inclusive foi dedicado belo ensaio (publicado originalmente na Revista Brasileira, 17.07.1879). E um
português que não era escritor ou literato, Furtado Coelho, que produtor teatral propiciou a Machado , porque
as levava a cena, o incrementar de sua importantíssima atividade de tradutor
(que Mario de Alencar, considerando-o “um dos maiores tradutores brasileiros”,
lamentava tivesse Machado interrompido ).
*
Por fim, uma reflexão a respeito de questão que muito me
instiga, e julgo pertinente. Machado – como representante proeminente do
movimento de ‘nacionalização literária’ brasileira -- parece ter sido o
primeiro, se não o único a se aproximar e interagir aos portugueses: não se tem
referência, por exemplo, das presença e atuação, nesse sentido, de
Gonçalves de Magalhães, José de Alencar e dos demais românticos empenhados,no
Brasil, nesse projeto (que se dava simultaneamente em Portugal, convém frisar)
de afirmação de nacionalidade literária e cultural.
Não existem dúvidas de quanto ambíguos, ou no mínimo
reticentes, postaram-se os românticos brasileiros com relação ao legado
lingüístico e cultural dos portugueses: mesmo tendo em conta a importância, ou
necessidade, de estabelecer, e sedimentar, traços diferenciadores do novo país depois da
independência de 1822, o curioso – e
contraditório – é que desenrolou-se um processo de obediência e
preservação dos padrões lingüísticos,sintáticos,gramaticais,léxicos portugueses
como uma espécie de atestado de qualificação cultural e ‘civilidade’ intelectual. Isto é, intentavam
os primeiros românticos brasileiros se constituírem nos agentes a afirmação
nacionalista brasileira, no âmbito cultural, sem no entanto romperem com o
arcabouço lusitano...
[1] Este artigo,
constituído como escopo para a palestra proferida durante o “6º. Colóquio
Portugal no Brasil: pontes para o presente”, realizado pelo Real Gabinete
Português de Leitura, no Rio de Janeiro, abriga elementos inerentes a Estudo, a
ser publicado neste 2012 – aliás, designado como “ano de Portugal no Brasil e do Brasil em Portugal”.
[2] Nesse particular,
poder-se ter em consideração que muito do perfil político-ideológico desse
grupo seria aquele inerente aos portugueses vindos para o Rio de Janeiro em
1837(e que criaram o Real Gabinete Português de Leitura) refugiados do levante
político do Porto,em Portugal – o que taxativamente comprova o papel
capital dos lusitanos também na
formação do pensamento político de Machado.
[3] Texto que oferece aos
estudiosos amplo arsenal de elementos para uma reflexão, até mesmo de cunho ‘revisionista’,
acerca da (até então e,de resto, quase consensualmente tida) índole e perfil
‘monarquista-liberal’ machadianos.
“(Graças ao jornal...) completa-se
a emancipação da inteligência e começa a dos povos.O direito da força,o
direito da autoridade bastarda consubstanciada nas individualidades dinásticas
vai cair. Os reis já não têm púrpura,envolvem-se nas constituições. As
constituições são os tratados de paz celebrados entre a potência popular e a
potência monárquica” [“O Jornal e o Livro”, in Correio Mercantil, Rio de Janeiro :10-12.01.1859].
terça-feira, 4 de setembro de 2012
O presente e o futuro das bibliotecas (especialmente da Biblioteca Nacional)
Mais, nas palavras do seu
Relatório de Gestão: "Para evitar sobrecarga (da rede elétrica), não é
permitido aos leitores utilizar carregadores para equipamentos como
computadores, gravadores e assemelhados".Neste ano, em duas ocasiões,
vazamentos do sistema de ar refrigerado inundaram áreas em vários andares,
formando poças com até 10 centímetros de profundidade.Há estantes que dão
choque, sua fachada centenária solta pedaços e tapumes protegem os pedestres.
Funcionários da instituição
fizeram uma manifestação na sua escadaria celebrando "o aniversário das
baratas que infestam o prédio, com destaque para seu 'berçário', no quinto
andar; das pragas que gostam muito de papel; brocas, traças e cupins" bem
como "dos ratos do primeiro andar".
Nesse cenário de real ruína,
ressurge a cantilena: faltam recursos. Coisa nenhuma. O governo da doutora
Dilma e a administração do companheiro Galeno Amorim, atual diretor da BN,
botam dinheiro da Viúva em coisas que nada têm a ver com a tarefa de guardar,
catalogar e tornar acessíveis os livros.Em 2011, o Orçamento deu à BN R$ 30,1
milhões para gastos sem relação com pessoal e encargos. De outras fontes
públicas, para diversas finalidades, recebeu mais R$ 63,4 milhões.A
digitalização dos sacrossantos Anais da BN parou em 1997, mas ela gastou alguns
milhões em coedições, no patrocínio de traduções (inclusive para o croata) e na
manutenção de um Circuito Nacional de Feiras do Livro. Colocou R$ 16,7 milhões
num programa de compra e distribuição de livros populares, ao preço máximo de
R$ 10 para distribuí-los pelo país afora. (Quem achou que por R$ 10 compram-se
também estoques de livros encalhados ganha uma passagem de ida e volta a
Paris.)
A criação de um polo de
irradiação editorial pode ser uma boa ideia, mas essa não é a atribuição da
Casa. Mercado de livros é coisa privada, biblioteca é coisa pública. Se ela não
tivesse ratos no primeiro andar, baratas em todos, estantes que dão choque e um
catálogo eletrônico mixuruca, poderia entrar no que quisesse, até mesmo na
exploração do pré-sal.
Se Galeno Amorim pode
revolucionar o mundo editorial brasileiro, a doutora Dilma deveria criar o
Programa do Livro Companheiro, o Prolico. Nomeando-o para lá, deixaria a
Biblioteca Nacional para quem pudesse cuidar dela."
...........................................................
[cada vez que tenho de ir na BN
-- e sou fadado a ter de ir muito --irrito-me previamente; o que não acontece
nunca com relação a outros acervos que frequento,para consultas e pesquisas.vo
u lá a priori irritado por (entre as que Elio registra e outras coisas
detestáveis)
1. só o documento oficial de
identidade, não a cópia (ora,preservo o original em casa e uso a cópia no dia a
dia)
2.nada de caneta,só lápis
(paranóia,que os demais acervos,inclusive públicos não têm, de que se vá
rabiscar o livro)
3.nada de papel impresso, folhas
virginalmente imaculadas (a troco de quê ? outra paranóia inadmissível)
4.não utilizar o carregador de
energia para o laptop (absurdo dos absurdos ! por vezes passo um dia inteiro lá
-- e imaginem a ginástica que se é obrigado a fazer)
5. para se entrar com o laptop, a
burocracia - inclusive com andanças pra lá e pra cá -- é inacreditável.
6.talvez o pior de tudo: o site
da BN só abriga e exibe os elementos para 576 mil obras, contra 2 milhões que
compõem o acervo total. e mais : experimente acessar o site,mesmo vc. numa
máquina (desktop ou laptop,ou tablet,etc) poderosa, em determinados horários,
ainda mais se o acesso desejado,que se necessite,requeira urgência : pobre
pesquisador ...]
É a mais importante biblioteca do
país: por isso, merecia\merece 'melhor tratamento' (para dizer o mínimo...). A
Biblioteca Nacional -- essa denominação assumida em 1876 -- originariamente
constituída como Biblioteca Real, trazida por d. João VI,com um acervo de 60
mil peças, tornou-se o principal elemento para os esforços de então para
disseminação do livro e da leitura. Denominada depois da Independência
Biblioteca Imperial e Pública da Corte,começando a se "abrasileirar e se
modernizar" a partir da década de 1840 -- quando começou a configurar-se a
formação de um público leitor no Brasil,evidenciado pela pela implementação de
redes de bibliotecas e pela instalação de sociedades de leitores (Sociedade
Literária do Rio de Janeiro;Ginásio Científico-Literário Brasileiro;Sociedade
Ensaios Literários;Grêmio Literário Português; Retiro Literário
Português;Sociedade Phil'Euterpe) e de gabinetes de leitura (alguns situados no
interior de livrarias [!]) -- dos quais o mais importante e de maior acervo era
o Real Gabinete Português de Leitura.
{estes dados encontram-se em meu
estudo,a se dar em livro, "As leituras dos formadores de leitores:Machado
de Assis,Lima Barreto e Monteiro Lobato".informa,mapeia,focaliza e
analisa,entre outros elementos --mormente os inerentes às fontes(autores e
obras) influenciadoras da formação literária dos aludidos três escritores -- o
processo e a dinâmica de constituição do público leitor brasileiro}
o presente e o futuro das bibliotecas
uma resposta : bibliotecas
públicas modernizadas, a conviverem, e interagirem, com as novas e dinâmicas (e
alvissareiras) mídias digitais, a 'compartilharem' com bibliotecas
escolares,bibliotecas comunitárias,e, retomando os 'modelos' daqueles idos do
pós-1840 [vide meu post anterior] , com núcleos e gabinetes de leitura e
sociedades literárias.
a meu juízo, tudo no presente e
no futuro depende\dependerá da capacidade de as bibliotecas incorporarem e se
integrarem à cultura digital,vale dizer à realidade inexorável - e eficaz -- do
mundo contemporâneo.
{neste sentido,busco viabilizar
-- primeiramente a nível de biblioteca universitária (encontro-me em tratativas
com uma) -- a implementação de acervos digitais(não de obras e textos apenas
digitalizados como as ações de 'biblioteca digital' até aqui praticadas em
geral mas sim disponibilizados em arquivos pdf a permitir leitura correta e
mesmo gravação), sob projetos que tenho devidamente formatados e constituídos}
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