sábado, 22 de dezembro de 2012
Natal: 2 contos e um soneto
Conto de Natal
Arthur Azevedo
I
Das janelas da sala de jantar dos
barões de Santa Bárbara, nas Laranjeiras, vi-se o interior da miserável casinha
onde morava o Alexandre, pobre –diabo desempregado e enfermo, vivendo de
expedientes confessáveis,carregando a vida com um esforço quase sobre-humano.
Fosse ele sozinho e tudo iria
pelo melhor ; mas era casado, e lhe nascera um filhinho nas proximidades
daquele Natal de 1871. Vir ao mundo uma criança, pelo Natal numa casa sem pão
nem conforto, é uma dessas ironias da sorte, que só se tolerara à força de
filosofia. O Alexandre era filósofo.
Os barões de Santa Bárbara, que
possuíam grandes cabedais,desejavam ter filhos e não os tinham. É sempre assim.
A baronesa, das janelas da sala de jantar, olhava com inveja para a mulher do
Alexandre. A mulher do Alexandre era pobre,paupérrima, quase indigente, mas
tinha o prazer e o orgulho de amamentar um filho !
Na véspera daquele Natal de 1871,
os barões de Santa Bárbara,enquanto esperavam o almoço, debruçaram-se à janela
e viram no interior de um quarto, na casinha do Alexandre, o recém-nascido
deitado numa caixa de batatas, envolvido em trapos.
O barão , que não era insensível
às misérias do próximo, encheu-se de piedade,tanto mais que, pela coincidência
do dia em que o acaso lhe deparava tão lastimoso espetáculo, parecia-lhe o
próprio Menino Jesus que ali estava deitado naqueles trapos, mas um Menino
Jesus desprezado pelos Reis Magos e pastores, um Menino Jesus com
alfazema,talvez, mas sem incenso nem mirra.
Sabia o barão que a baronesa era
muito egoísta : não gostava de praticar o bem nem mesmo por ostentação ; foi,
por isso, com certo receio que lhe propôs enviarem algum socorro aos vizinhos
pobres ; quanto mais não fosse, umas roupinhas para o bebê.
- Estás doido ! respondeu ela.
Nunca mais nos largariam a porta !
- Mas não era preciso que
soubessem de onde partia o benefício ; a nossa esmola seria anônima ...
- Qual ! deixa-te dessas idéias !
Eles precisam, é certo, mas há quem precise ainda mais e não seria justo
socorrer somente a estes ,quando não podemos acudir aos outros ! Por que esse
exclusivismo ? E depois, tu sabes lá que espécie de gente é essa ? Tu sabes se
empregaríamos bem a nossa caridade ? Deixa-te dessas idéias, homem de Deus, e vamos
almoçar, que a maionese está na mesa.
Comeram ambos o almoço triste dos
esposos que pensam diversamente um do outro, sem filhos que atenuem o que possa
ter de inconveniente e dolorosa a divergência de sentimentos e impressões.
Inteligente e sensato, o barão
não contrariava a baronesa,embora no íntimo lhe detestasse o caráter, e não
perdoasse tanto egoísmo numa criatura que lhe trouxera, quando se casou com
ele, apenas a roupa do corpo e o próprio corpo. Fazia-lhe todas as vontades.
Foi assim que comprara aquele
título ridículo de barão de Santa Bárbara, nome da fazenda onde ele nascera, e
era propriedade sua, na Província do Rio.
Todos o tinham em conta de um
marido dominado pela mulher, quando o que o dominava era apenas o desejo de
viver com ela em aparente harmonia, sem dar aos criados nem aos vizinhos,nem a
si mesmo o espetáculo mofino de um casal desunido.
O barão saiu logo depois do
almoço e foi a carro para o seu escritório da rua de São Bento.
Como a lembrança do pobre
pequenino ,deitado no caixão de batatas, o perseguisse com a insistência de um
remorso, ele chamou em particular um empregado de confiança, incumbiu-o de
comprar um berço, um enxoval completo de recém-nascido, peças de morim e de
chita, latas de leite condensado, vidros de geléia, garrafas de vinho do Porto,
etc, e mandar tudo, e mais algum dinheiro,à casa do Alexandre, sem que ninguém
soubesse nem suspeitasse a proveniência desse presente.
O empregado cumpriu
irrepreensivelmente as ordens do patrão, e foi com uma surpresa, manifestada
por frases impertinentes, que a baronesa viu, à tardinha, o caixão de batatas
substituído por um berço de vime e os andrajos por boa roupa.
- Vês ? disse ela ao barão.
Faríamos asneira se lhes mandássemos alguma coisa: não lhes falta nada !
Pouco tempo depois, a família do
Alexandre mudou de residência, e os barões de Santa Bárbara nunca mais tiveram
notícia dela.
II
Passaram-se muitos anos ,que
correram prósperos para o barão, grande plantador de café ; mas a lei de 13 de
Maio surpreendeu-o, como a tantos outros agricultores imprevidentes, e a sua
fortuna sofreu grandes reveses.
Depois de proclamada a República,
ele atirou-se às especulações da Bolsa ; ficou milionário durante a nevrose do
Encilhamento, e não adivinhou a catástrofe. Quando esta veio, encontrou os seus
milhões representados em ações de bancos e companhias que não valiam mais nada,
e cuja liquidação foi a ruína completa. Nada,absolutamente nada lhe deixaram
!...
Nesse doloroso transe, o infeliz
titular não ouviu da esposa uma única palavra de consolação ou de esperança que
o animasse ; pelo contrário : a baronesa desfazia-se em exprobações e
invetivas, e isto concorreu, naturalmente, para desesperá-lo.
O mísero tinha resolvido
suicidar-se, quando uma congestão pulmonar o livrou de cometer esse pecado.
Morto o barão, a baronesa,
sexagenária e enferma, ficou reduzida à miséria. Os amigos e parentes do marido
tinham já se evaporado há muito tempo, e nenhum simpatizava com ela.
A desgraçada ia ser posta na rua
por um senhorio implacável, e, para não morrer de fome, estava resolvida a
pedir que a mandassem para um asilo, quando foi procurada por um belo rapaz de
vinte e cinco anos,pouco mais ou menos, que lhe disse :
- Sra. baronesa, conheço v.ex.,
estou ao corrente de todas as desgraças que lhe sucederam, venho pedir-lhe que
aceite um lugar em nossa casa.
- Mas quem é o senhor ?
- Sou aquela criança que, na
véspera do Natal, em 1871, nas Laranjeiras, dormia num caixão de batatas, e a
quem v. ex. socorreu,mandando-lhe um berço,roupinhas e leite. Bem vê v.ex. que
não faço mais do que pagar uma dívida de gratidão.
- Mas não me lembro... não fui eu
que...
- O empregado que se encarregou
de fazer com que essa delicada esmola chegasse ao seu destino, não foi tão
discreto como lhe recomendaram. Ele disse a meu pai,confidencialmente, que a
esmola era do falecido sr.barão, mas minha mãe acudiu logo : - Não ! a
lembrança é da baronesa ! Só as mulheres são capazes destes melindres do
coração !
A baronesa não confirmou nem
desmentiu.
- Há vinte e cinco anos, continuou
o rapaz, o nome de v. ex. é repetido naquela casa como o de uma santa ! Venha,
sra. baronesa ! Meu paí é morto, mas eu ganho o suficiente para sustentar duas
mães...
Uma hora depois, a baronesa de
Santa Bárbara estava muito bem alojada na casa dos seus protetores.
___________
Soneto de Natal
Machado de Assis
Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,
Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.
Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca.
A pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"
_______________
Milagre do Natal
Lima Barreto
O bairro do Andaraí é muito
triste e muito úmido. As montanhas que enfeitam a nossa cidade, aí tomam maior
altura e ainda conservam a densa vegetação que as devia adornar com mais força
em tempos idos. O tom plúmbeo das árvores como que enegrece o horizonte e torna
triste o arrabalde.
Nas vertentes dessas mesmas
montanhas, quando dão para o mar, este quebra a monotonia
do quadro e o sol se espadana
mais livremente, obtendo as cousas humanas, minúsculas e mesquinhas, uma
garridice e uma alegria que não estão nelas, mas que sê percebem nelas. As
tacanhas casas de Botafogo se nos afigura assim; as bombásticas
"vilas" de Copacabana, também; mas, no Andaraí, tudo fica esmagado
pela alta montanha e sua sombria vegetação.
Era numa rua desse bairro que
morava Feliciano Campossolo Nunes, chefe de secção do Tesouro Nacional, ou
antes e melhor: subdiretor. A casa era própria e tinha na cimalha este dístico
pretensioso: "Vila Sebastiana". O gosto da fachada, as proporções da
casa não precisam ser descritas: todos conhecem um e as outras. Na frente,
havia um jardinzinho que se estendia para a esquerda, oitenta centímetros a um
metro, além da fachada. Era o vão que correspondia à varanda lateral, quase a
correr todo o prédio.
Campossolo era um homem grave,
ventrudo, calvo, de mãos polpudas e dedos curtos. Não largava a pasta de
marroquim em que trazia para a casa os papéis da repartição com o fito de não
lê -los; e também o guarda-chuva de castão de ouro e forro de seda.Pesado e de
pernas curtas, era com grande dificuldade que ele vencia os dois degraus dos
"Minas Gerais" da Light, atrapalhado com semelhantes cangalhas: a
pasta e o guarda chuva de " ouro".
Usava chapéu de coco e
cavanhaque.
Morava ali com sua mulher mais a
filha solteira e única, a Mariazinha.A mulher, Dona Sebastiana, que batizara a
vila e com cujo dinheiro a fizeram, era mais alta do que ele e não tinha nenhum
relevo de fisionomia, senão um artificial, um aposto. Consistia num pequeno
pince-nez de aros de ouro, preso, por detrás da orelha, com trancelim de seda.
Não nascera
com ele, mas era como se tivesse
nascido, pois jamais alguém havia visto Dona Sebastiana sem aquele adendo,
acavalado no nariz. fosse de dia, fosse de noite. Ela, quando queria olhar
alguém ou alguma cousa com jeito e perfeição, erguia bem a cabeça e toda Dona
Sebastiana tomava um entono de magistrado severo.
Era baiana, como o marido, e a
Única queixa que tinha do Rio cifrava-se em não haver aqui
bons temperos para as moquecas, carurus
e outras comidas da Bahia, que ela sabia preparar com perfeição, auxiliada pela
preta Inácia, que, com eles. viera do Salvador, quando o marido foi transferido
para São Sebastião. Se se oferecia portador, mandava-os buscar; e. quando, aqui
chegavam e ela preparava uma boa moqueca, esquecia -se de tudo, até que estará
muito longe da sua querida cidade de Tomé de Sousa.
Sua filha, a Mariazinha, não era
assim e até se esquecera que por lá nascera: cariocara-se inteiramente. Era uma
moça de vinte anos, fina de talhe, poucas carnes, mais alta que o pai,
entestando com a mãe, bonita e
vulgar. O seu traço de beleza eram os seus olhos de topázio com estilhas
negras. Nela, não havia nem invento, nem novidade como - as outras.
Eram estes os habitantes da
"Vila Sebastiana" , além de um molecote que nunca era o mesmo. De
dous em dous meses, por isso ou por aquilo, era substituído por outro, mais
claro ou mais escuro, conforme a sorte calhava.
Em certos domingos, o Senhor
Campossolo convidava alguns dos seus subordinados a irem almoçar ou jantar com
eles. Não era um qualquer. Ele os escolhia com acerto e sabedoria. Tinha uma
filha solteira e não podia pôr dentro de casa um qualquer, mesmo que fosse
empregado de fazenda. Aos que mais constantemente convidava, eram os terceiros
escriturários Fortunato Guaicuru e Simplício Fontes, os seus braços direitos na
secção. Aquele era bacharel em Direito e espécie de seu secretário e consultor
em assuntos difíceis; e o último chefe do protocolo da sua secção, cargo de
extrema responsabilidade, para que não houvesse extravio de processos e se
acoimasse a sua subdiretoria de relaxada e desidiosa. Eram eles dous os seus
mais constantes comensais, nos seus bons domingos de efusões familiares.
Demais, ele tinha uma filha a casar e era bom que...
Os senhores devem ter verificado
que os pais sempre procuram casar as filhas na classe que
pertencem: os negociantes com
negociantes ou caixeiros; os militares com outros militares; os médicos com
outros médicos e assim por diante. Não é de estranhar, portanto, que o chefe
Campossolo quisesse casar sua filha com um funcionário público que fosse da sua
repartição e até da sua própria secção.
Guaicuru era de Mato Grosso.
Tinha um tipo acentuadamente índio. Malares salientes, face
curta, mento largo e duro,
bigodes de cerdas de javali, testa fugidia e as pernas um tanto arqueadas.
Nomeado para a alfândega de Corumbá, transferira-se para a delegacia fiscal de
Goiás. Aí, passou três ou quatro anos, formando-se, na respectiva faculdade de
Direito, porque não há cidade do Brasil, capital ou não, em que não haja uma.
Obtido o título, passou-se para a Casa da Moeda e,desta repartição, para o
Tesouro. Nunca se esquecia de trazer o anel de rubi, à mostra. Era um rapaz
forte, de ombros largos e direitos; ao contrário de Simplício que era franzino,
peito pouco saliente, pálido, com uns doces e grandes olhos negros e de uma
timidez de donzela.Era carioca e obtivera o seu lugar direitinho, quase sem
pistolão e sem nenhuma intromissão de políticos na sua nomeação.
Mais ilustrado, não direi; mas
muito mais instruído que Guaicuru, a audácia deste o superava, não no coração
de Mariazinha, mas no interesse que tinha a mãe desta no casamento da filha. Na
mesa, todas as atenções tinha Dona Sebastiana pelo hipotético bacharel:
- Porque não advoga? perguntou
Dona Sebastiana, rindo, com seu quádruplo olhar altaneiro, da filha ao caboclo
que, na sua frente e a seu mando, se sentavam juntos.
- Minha senhora, não tenho
tempo...
- Como não tem tempo? O
Felicianinho consentiria - não é Felicianinho? Campossolo fazia solenemente :
- Como não, estou sempre disposto
a auxiliar a progressividade dos colegas.
Simplício, à esquerda de Dona
Sebastiana, olhava distraído para a fruteira e nada dizia. Guaicuru, que não
queria dizer que a verdadeira . razão estava em não ser a tal faculdade
"reconhecida", negaceava:
- Os colegas podiam reclamar.
Dona Sebastiana acudia com
vivacidade :
- Qual o que . O senhor
reclamava, Senhor Simplício?
Ao ouvir o seu nome, o pobre
rapaz tirava os olhos da fruteira e perguntava com espanto:
- O que, Dona Sebastiana ?
- O senhor reclamaria se
Felicianinho consentisse que o Guaicuru saísse, para ir advogar?
- Não.
E voltava a olhar a fruteira,
encontrando-se rapidamente com os olhos de topázio de Mariazinha. Campossolo
continuava a comer e Dona Sebastiana insistia:
- Eu, se fosse o senhor ia
advogar.
- Não posso. Não é só a
repartição que me toma o tempo. Trabalho em um livro de grandes proporções.
Todos se espantaram. Mariazinha
olhou Guaicuru; Dona Sebastiana levantou mais a cabeça
com pince-nez e tudo; Simplício
que, agora, contemplava esse quadro célebre nas salas burguesas,representando
uma ave, dependurada pelas pernas e faz pendant com a ceia do Senhor -
Simplício,dizia, cravou resolutamente o olhar sobre o colega, e Campossolo
perguntou:
- Sobre o que trata?
- Direito administrativo
brasileiro.
Campossolo observou:
- Deve ser uma obra de peso.
- Espero.
Simplício continuava espantado,
quase estúpido a olhar Guaicuru. Percebendo isto, o matogrossense apressou-se:
- Você vai ver o plano. Quer
ouvi-lo ?
Todos, menos Mariazinha,
responderam, quase a um tempo só:
- Quero.
O bacharel de Goiás endireitou o
busto curto na cadeira e começou:
- Vou entroncar o nosso Direito
administrativo no antigo Direito administrativo português.
Há muita gente que pensa que no
antigo regime não havia um Direito administrativo. Havia. Vou estudar o
mecanismo do Estado nessa época, no que toca a Portugal. V ou ver as funções
dos ministros e dos seus subordinados, por intermédio de letra-morta dos
alvarás, portarias, cartas régias e mostrarei então como a engrenagem do Estado
funcionava; depois, verei como esse curioso Direito público se transformou, ao
influxo de concepções liberais; e, como ele transportado para aqui com Dom João
VI, se adaptou ao nosso meio, modificando-se aqui ainda, sob o influxo das
idéias da Revolução.
Simplício, ouvindo-o falar assim
dizia com os seus botões: "Quem teria ensinado isto a ele?"
Guaicuru, porém, continuava:
- Não será uma seca enumeração de
datas e de transcrição de alvarás, portarias, etc. Será uma cousa inédita. Será
coisa viva.
Por aí, parou e Campossolo com
toda a gravidade disse:
- V ai ser uma obra de peso.
- Já tenho editor!
- Quem é? perguntou o Simplício.
- É o Jacinto. Você sabe que vou
lá todo o dia, procurar livros a respeito.
- Sei; é a livraria dos
advogados, disse Simplício sem querer sorrir.
- Quando pretende publicar a sua
obra, doutor? perguntou Dona Sebastiana.
- Queria publicar antes do Natal.
porque as promoções serão feitas antes do Natal, mas...
- Então há mesmo promoções antes
do Natal, Felicianinho ?
O marido respondeu:
- Creio que sim. O gabinete já
pediu as propostas e eu já dei as minhas ao diretor.
- Devias ter-me dito, ralhou-lhe
a mulher.
- Essas coisas não se dizem às nossas
mulheres; são segredos de Estado, sentenciou Campossolo.
O jantar foi. acabando triste,
com essa história de promoções para o Natal.
Dona Sebastiana quis ainda animar
a conversa, dirigindo-se ao marido:
- Não queria que me dissesses os
nomes, mas pode acontecer que seja o promovido o doutor Fortunato ou... O
"Seu" Simplício, e eu estaria prevenida para a uma
"festinha".Foi pior. A tristeza tornou-se mais densa e quase calados
tomaram café.Levantaram-se todos com o semblante anuviado, exceto a boa Mariazinha,
que procurava dar corda à conversa. Na sala de visitas, Simplício ainda pôde
olhar mais duas vezes furtivamente os olhos topazinos de Mariazinha, que tinha
um sossegado sorriso a banhar-lhe a face toda; e se foi.
O colega Fortunato ficou, mas
tudo estava tão morno e triste que, em breve, se foi também
Guaicuru.
No bonde, Simplício pensava
unicamente em duas coisas: no Natal próximo e no "Direito"
de Guaicuru. Quando pensava nesta
.' perguntava de si para si: "Quem lhe ensinou aquilo tudo?
Guaicuru é absolutamente
ignorante" Quando pensava naquilo, implorava: "Ah! Se Nosso Senhor
Jesus Cristo quisesse..."
Vieram afinal as promoções.
Simplício foi promovido porque era muito mais antigo na classe que Guaicuru. O
Ministro não atendera a pistolões nem a títulos de Goiás. Ninguém foi
preterido; mas Guaicuru que tinha em gestação a obra de um outro, ficou furioso
sem nada dizer.
Dona Sebastiana deu uma consoada
à moda do Norte. Na hora da ceia, Guaicuru, como de
hábito, ia sentar-se ao lado de
Mariazinha, quando Dona Sebastiana, com pince-nez e cabeça, tudo muito bem
erguido, chamou-o:
- Sente-se aqui a meu lado,
doutor, aí vai sentar-se o "Seu" Simplício.
Casaram-se dentro de um ano; e,
até hoje, depois de um lustro de casados ainda teimam.
Ele diz:
- Foi Nosso Senhor Jesus Cristo
que nos casou.
Ela obtempera:
- Foi a promoção.
Fosse uma coisa ou outra, ou
ambas, o certo é que se casaram. É um fato. A obra de
Guaicuru, porém, é que até hoje
não saiu...
Careta, 24-12-1921.
[* o último Natal (e dezembro) de Lima : morreria em 1º. nov 1922]
quarta-feira, 12 de dezembro de 2012
réquiem a Niemeyer : AS CIDADES - I
como um réquiem a Oscar Niemeyer
AS CIDADES
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AS CIDADES
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Estranhos nas ruas, íntimos na rede
“Viver numa cidade é viver numa comunidade de pessoas estranhas umas às outras”,assim vaticina o escritor anglo-americano Jonathan Raban; andamos e perambulamos -- qual flâneurs a la Walter Benjamin, João do Rio, Lima Barreto – pelas ruas das cidades como estranhos, anônimos no meio de uma multidão de desconhecidos.
“No princípio, vivíamos em aldeias. Depois, vivemos em cidades. Hoje, vamos viver na internet”, sentenciou o presidente do Facebook, Sean Parker. A mídia digital, a internet, as redes sociais constituem atualmente a verdadeira,real, concreta(sem trocadilho) arquitetura que habitamos, os palcos centrais e,importante notar, os mais transparentes da existência -- e da convivência humana..
Nas ruas vocês\nós estão\estamos sozinho – mas NÃO na mídia digital, nas redes sociais: cada vez mais interligados, interconectados, ‘interdialogantes’ e sobretudo interparticipantes da vida alheia...
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[em sequência, 3 estudos sobre 3 cidades : "Espelhos: o Rio de Janeiro por quatro escritores "; "São Paulo,cidade literária"; "Petrópolis,cidade literária"]
réquiem a Niemeyer : AS CIDADES - II
Espelhos
: o Rio de Janeiro por quatro escritores
Um
quarteto espetacular de escritores; quatro obras excepcionais, canônicas -- Memórias de um sargento de milícias,, de
Manuel Antonio de Almeida; Casa Velha, de
Machado de Assis; Triste fim de Policarpo
Quaresma, de Lima Barreto; A alma
encantadora das ruas,, de João do Rio – verdadeiros,exuberantes retratos,espelhados entre si e com a cidade,
do Rio de Janeiro.
________
Caso exemplar de simbioses –
magníficas criações literárias de grandes escritores, a propiciar
estimulantes possibilidades de
formulação de estudos e reflexões sobre interações entre as peças . A rigor, mostra muito mais do que
o geográfico-urbano-espacial elo comum entre o Rio e notáveis literatos: traz
outros elementos de relações, encadeamentos e ilações -- estas tanto de
identificação quanto de contraposição --
entre as quatro obras, seus autores e... seus
personagens.
Qual
espelhos que ao mesmo tempo em que refletem ‘invertem’ imagens, as obras
em tela guardam e mantêm entre si identidades e contraposições, similaridades e
contrapontos,intertextualidades e cotejamentos.(teriam os idealizadores deste conjunto
inicial da Coleção vislumbrado essas interações de atores e obras,
e o concebido sob esse approach ?....)
Primeiramente, vale observar que, sob
a órbita do cenário carioca da segunda metade do século XIX e duas primeiras
décadas do século XX brasileira, os
quatro livros guardam,entre cada um dos
escritores de cada uma das obras, o importante vínculo de encadeamento
sequencial de ciclos cruciais da
historiografia literária brasileira , a saber: Memórias
de um sargento de milícias como
exemplar do Romantismo ( abalizadas análises projetem a obra de Manuel Antonio de Almeida na verdade como um antecipador do Realismo) ;
Casa Velha, como (especial) representante do Realismo
(malgrado,não apenas Machado de Assis
poder ser considerado, e o é,acima de todos os ciclos e rótulos e chancelas,
como ainda a interpretação deflagrada
pela crítica e ensaísta Lucia Miguel-Pereira em Machado de Assis: Casa Velha,1944, interpretação equivocada e
depois revisada e corrigida, de ter sido a obra escrita muito antes de 1885,
quando foi concretamente publicada).; Triste
fim de Policarpo Quaresma,romance expoente do Prémodernismo,de que Lima
Barreto foi inconteste epígono, de resto ciclo que também abrigou João do Rio e
sua ode à "alma encantadora das ruas"-- obra que assume papel bastante peculiar,qual uma 'apresentadora' do cenário urbano onde se
desenrolam as histórias e tramas narradas
nas outras três obras.
A par de ilações concretas de cunho
intelectual e literário entre os escritores e as obras em tela, mencionemos
a existência efetiva de relações de ordem pessoal – amistosas, num caso;
de franca antipatia mútua,em outro :
enquanto Manuel Antonio de Almeida e Machado de Assis guardavam excelente
relacionamento e até afinidades afetivas
entre si (mas também marcantes ilações literárias, como se verá)– Almeida,.além
de ter sido chefe de Machado na oficina
da Imprensa Nacional,iniciando-o na arte e atividade de tipografia, introduziu-o
na Sociedade Petalógica e no seleto círculo intelectual em torno de
Paula Brito e foi seu grande incentivador para o fazer literatura; Machado,
inclusive,dedicou a ele o (importantíssimo) artigo “O jornal e o livro”,
publicado em janeiro 1859 (ele, com menos de 19 anos e meio) no Correio Mercantil – de
outro lado, Lima Barreto e João do Rio se antegonizavam, nutriam forte
animosidade um pelo outro.E entre Machado e João do Rio deu-se curiosa episódio : Machado nunca respondeu ao
questionário que,em 1899, João lhe submetera
para a coletânea, de entrevistas com diversos escritores, O momento literário, e acabou não
aparecendo – não se sabe até hoje porque – na obra, publicada em 1904..
Em outro viés – aqui de natureza
digamos ‘filosófica’ -- em Machado de Assis e Lima Barreto as diferenças e
divergências entre ambos escondem proximidades e até mesmo identidades bastante
significativas (veiculei estudo a
respeito, exatamente com esse título,
“Diferentes, divergentes, mas próximos muito próximos”, no qual promulgo Lima Barreto e
Machado de Assis como verdadeiros, natos, ‘parentes literários’. Ainda que
bastante diferentes, ambos muito próximos de várias maneiras – essencialmente
semelhantes em concepções filosóficas, temas, influências, pontos de
vista,mesmo que sob formas,modos e discursos distintos. De modo convergente,
mas de forma divergente, analisaram os
cenários políticos, históricos,institucionais,sociais,culturais de suas épocas
e a existência do homem --: Machado, privilegiando as nuances, dissecando-o em
sua essência,revelando sutilezas, contradições e ambigüidades psicológicas;
Lima, sem linhas e focos enviezados, desnudando suas fraquezas, insuficiências,
submissões, condições sociais. Se Machado inaugurou o psicologismo na ficção
brasileira, Lima introduziu o tema da incomunicabilidade, do isolamento
existencial e social.)
Por outro lado, notáveis – e sem o serem
inusitadas ou surpreendentes - são as
intertextualidades, quer de interações quer de contraposições, explícitas ou=implícitas,
entre as quatro obras e os quatro autores. ’Sob um viés, Memórias de um sargento de milícias irradia genericamente para Casa Velha e para Triste fim de Policarpo Quaresma um vetor de estado e posturas de
autoritarismo, concreto ou latente: o autoritarismo ditatorial de Vidigal, em Memórias... é do mesmo naipe do de Floriano,como tratado em Policarpo Quaresma – de que aliás é o personagem
principal, sem dúvida – e de outro tom no autoritarismo doméstico,familiar de
d. Antonia em Casa Velha.
Leonardo Filho, Lalau e Policarpo
Quaresma, cada um a seus modo, feitio e circunstâncias, são personagens que
reagem a pressões, por vezes intoleráveis, de uma sociedade dominadora,
patriarcal, ou de um ambiente matriarcal(como em Casa
Velha ) – de resto, também
o que se dá com os personagens de Lima Barreto, no geral de sua ficção :
Leonardo Filho e Policarpo agem, mas sofrem as sanções da sociedade e do
sistema político -- para o primeiro,ainda colonial; para o outro, já
republicano -- que os sufocam e ferem; Lalau, de um imperial âmbito familiar,doméstico, e de esfera social.
Quer
em Memórias de um sargento de milícias,
em Casa Velha , quer em Triste fim de Policarpo Quaresma, personagens, situações,tramas – e
os autores – ‘subjugados’ ao Estado,onipresente, seja “no tempo do rei”, seja
‘sob o manto imperial’(em 1839),seja sob a ‘mão pesada da República’.
Não
chego a dizer e sustentar que Memórias de
um sargento de milícias e Manuel Antonio de Almeida sejam a obra e o autor
capitais, centrais, deste conjunto, mas podem ser vistos como um pólo gerador
de eixos de ilações e recorrências com as demais obras e autores. Antonio de
Almeida e sua obra -- emblemática de uma inflexão temática, tramática e
estilística no romantismo literário brasileiro -- ‘interagem’ com Machado de
Assis não só na antecipação do Realismo,
mas também, e especificamente,no que Memórias
de um sargento de milícias --‘anárquica’, ‘picaresca’(conotação, na
verdade, cunhada por Mario de Andrade ,
é questionada por Antonio Candido,em seu primoroso ensaio “Dialética da
malandragem”, para quem Leonardo Filho
antes de ser um ‘pícaro’ é, sim, o primeiro malandro da literatura brasileira .
No entanto, para ‘simplificar’ e evitar estender o que não é propósito deste
comentário, aceitemos e adotemos essa
designação mesmo.) -- prenuncia Memórias
póstumas de Brás Cubas (1881)– ‘inovadora’, ‘revolucionária’, marco da
inflexão machadiana e de rito de passagem para o Realismo literário
brasileiro,e da qual – convém notar - Casa
Velha(1885),na produção romanesca machadiana, é seqüente.
Memórias
de um sargento de milícias contrasta
com a ficção brasileira do tempo – como Casa
Velha difere, no enfoque e no tom e timbre, da ficção realista de sua época
e inclusive, e em especial, das obras romanescas de Machado de Assis a partir
da década de 1880 (Memórias póstumas de
Brás Cubas; Quincas Borba; Dom Casmurro; Esaú e Jacó; Memorial de Ayres)
“O
tempo do rei’, i.e. de d. João VI, em que se dá a história de Memórias de um
sargento de milícias, é citado e adquire significância especial em Casa Velha , no que
determina como fulcro inicial na
dinâmica da trama a intenção do padre-narrador em escrever a história de Pedro
I, inspirado numa Memória de d. João VI,de autoria do pde. Luís Gonçalves dos Santos,
o pde.Perereca. Vale dizer, a obra que o cônego em Casa
Velha propõe-se a
escrever é,no âmbito ficcional, ‘decorrente’ da vivência no tempo em que
decorre Memórias de um sargento de
milícias.: nesta, a estrutura da
trama, inerente a história política
entre 1808 e 1822, faz o pano de fundo
histórico da obra de Manuel Antonio de Almeida
terminar onde começa o da obra de Machado de Assis.
Mais do que ‘picaresca’[sic] ou outra conotação que se lhe
atribua, Memórias... é antes de tudo, um romance social – como aliás são os
de Lima Barreto. Mas é também uma
história do amor de Leonardo Filho por Luisinha – esta, ao contrário, de Lalau,
de Casa Velha, e de certo modo de
Olga, de Policarpo Quaresma, é mocinha burguesa, com herança e meneios
dissimulados. A obra de Antonio de Almeida também retrata uma família –
Leonardo Filho, seu pai e sua mãe, aliás
o núcleo central do elenco de protagonistas, como o são em Casa
Velha d. Antonia,Lalau e Félix. Na obra de Machado de
Assis há a contraposição ao mundo patriarcal representada pela figura de d.
Antonia, e em dada escala por Lalau, não de todo submissa às regras sociais
(embora de comportamento dentro da ‘ordem’); em Memórias de um sargento de milícias
personalizada essa contraposição,e confrontante com a ordem estabelecida, por
Leonardo Filho: ele e Lalau são dotados, cada um per se, de elementos simbólicos, como personagens –representantes das classes
não-dirigentes [e caberia aqui uma
especulação- claro que numa escala ‘surreal’ : Lalau poderia se interessar,e vice-versa, por
Leonardo?...]
Por sua vez, tanto Memórias de um sargento de milícias quanto Triste
fim de Policarpo Quaresma, talvez
com sinais invertidos, representam metáforas sobre o destino do Brasil como Nação. A impressão de realidade
comunicada pelas obras decorre de uma visão mais profunda, embora instintiva,
da função, ou "destino" das pessoas naquelas sociedades; Manuel
Antônio, guardadas as devidas proporções, mantém em comum com os autores realistas: a capacidade
de intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da
sociedade --exatamente como Lima Barreto..
Ambas as obras e seus
protagonistas como veículos de
hilariantes sátiras sócio-políticas, das instituições, Policarpo Quaresma como
uma espécie de Leonardo Filho ao
contrário : se aquele é modelo do
patriota, este é o antipatriota. Enquanto Leonardo Filho sofre a repressão de
uma sociedade forte,preocupada com a ordem pública, Policarpo convence-se da necessidade de um
governo forte -- o que o leva a apelar ao poder de Floriano Peixoto e
alistar-se no exército florianista.
No geral e em essência, o universo
dos personagens da obra de Antonio de Almeida – empregados, subempregados,
desempregados, biscateiros; destituídos, marginalizados, etc – é o universo
ficcional de toda a obra de Lima Barreto.Os dois autores, ‘contestadores’ da
ordem – não apenas numa,digamos, ideologia de suas respectivas tramas e temas
ficcionais, mas também na forma
literária: as escrita e linguagem ficcional imprimidas em Memórias.guarda identidades com as escrita,estilo e linguagem
literária de Lima Barreto, ambas coloquiais,despojadas,fluentes,lastreadas na
oralidade.(“antinefelibatas”, segundo Lima).
Em Triste fim de Policarpo Quaresma
– como de resto nos demais romances e
novelas barretianos (Recordações do
escrivão Isaias Caminha e Morte e
vida de M.J. Gonzaga de Sá; em Clara
dos Anjos) – há um pathos trágico,
da derrota final de Policarpo; em Memórias
de
um sargento de milícias , ao
contrário, dá-se um aparente pathos ‘épico’,
de vitória, Leonardo Filho feito por fim sargento de milícias. Se Leonardo
Filho é um ‘herói atuante’, picaresco [ sic
: conservemos a conotação
‘picaresca’,vá lá...] , ‘thorminiano’ (de Lazarillo de Thormes), Policarpo
(bem como Isaias Caminha – e similarmente ao machadiano ‘homem de espírito’) é um autêntico ‘herói
carlyleano’,um ‘herói solitário’, ‘intelectual’ lyleano’– per se um flâneur. Incorporado de Carlyle (uma das
maiores influências intelectuais em Lima),
o flâneur barretiano – foi Lima o introdutor desta figura na literatura
brasileira – que é um flâneur dramático,debilitado, andarilho
decadente, está
no flaneurismo ,de perfil e atuação
completamente contrários, de João do Rio, em seus freqüentar e retratar as ruas
da cidade.
Identificação e ‘entrocamento’ entre
Lima e João – não obstante as antipatia
e animosidade de um pelo outro no campo pessoal -- que não se dá apenas nesse terreno subjetivo
de comportamento social mas também em vívidos aspectos comuns da realidade de
origem e de vivência de cada um.
Ambos
naturais e falecidos no mesmo Rio de Janeiro – João do Rio nascido em
1880, Lima Barreto em 1881(aliás, ano de publicação de Brás Cubas,marco ficcional machadiano); João, morto em 1921, Lima
em 1922 : um ano a separá-los em seus nascimentos e mortes – Lima oriundo de
família modesta, de funcionário público empregado pela Monarquia, amante de
seus ‘adoráveis subúrbios’,rebelde e automarginalizado; João, de família de
classe média, abolicionista,positivista, republicana, dândi integrando-se
gradativamente às altas esferas da sociedade e às elites ;
os dois vividos na mesma cidade,então em ebulição, pela pretensa
modernização, ambos sob a mesma República, João, entusiasta incondicional,
Lima, crítico visceral.
João do
Rio, sempre atuando na ‘imprensa burguesa’, em grandes jornais,prestigiado e
famoso, foi até mesmo empresário jornalístico;; Lima Barreto, embora iniciando
no portentoso e poderoso Correio da Manhã (acida e
demolidoramente criticado em Recordações
do escrivão Isaias Caminha—aliás, também João do Rio, impiedosamente
satirizado pela “futilidade de sua pose”), sempre preferiu a imprensa libertária, alternativa,
contestadora.. O João cronista, autêntico seguidor da ‘arte das transições’ e
da ‘circularidade na crônica’ de Machado de Assis (espécie de marca registrada,
entre outras características marcantes, a “arte das transições” faz parte
da própria forma narrativa,, unindo tópicos aparentemente distintos, um
parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um
resultado surpreendente,cujo trajeto é
‘amenizado’ para os leitor , primeiro desviando-o do tema principal, depois
retornando e reintegrando-o,numa espiral
muitas vezes nem percebida de todo) : Lima, praticante consciente
de um novo estilo, contundente,
fomentador,para não dizer criador, da crônica contemporânea. João do Rio,
criador do colunismo social, um olhar no mundanismo, antagoniza e confronta
Lima Barreto, comentarista político, sempre no debruçar nos aspectos sociais.
Mas, embora dotados de ideologias,
posturas, visões e interpretações nada convergentes, ambos profundamente
interessados na cidade e no seu habitante. É nesse sentido e com essa índole
que João do Rio registra, apregoa, expõe, dissemina e exalta a “alma encantadora das ruas” da cidade – que
por sua vez está também nos becos,ruelas,ladeiras, por onde Leonardo Filho e os
personagens transitam ‘picarescamente’[sic]
na obra de Manuel Antonio de Almeida e onde Lima Barreto constrói e ambienta
todas suas tramas ficcionais. Os mesmos
contingentes sociais da cidade povoam literariamente as obras dos três
escritores.
réquiem a Niemeyer : AS CIDADES - III
São Paulo, cidade literária
“Há uma
história da literatura que se projeta na cidade de São Paulo; e há uma história
da cidade de São Paulo que se projeta na literatura (Antonio Candido)
A cidade de
São Paulo sempre foi pólo fundamental da literatura brasileira.
E a aura do pioneirismo sempre a acompanhou, desde
seus primórdios. Não surpreende pois que
em São Paulo
tenha nascido e se manifestado um dos momentos fundamentais da história
cultural brasileira , o Modernismo.A cidade , já natural e sequencialmente
pioneira em diversas manifestações
literárias — desde os jesuítas, fundadores da Vila São Paulo de Piratininga, a
25 de janeiro de 1554 (não se pode
esquecer que o Diálogo sobre a
conversão do gentio, de Manuel da Nóbrega, é o primeirissimo documento
literário do Brasil, e o Auto da Pregação
Universal, de José de Anchieta, a primeira peça encenatória) — o foi também
, por exemplo, na precursora expressão poética do ‘indianismo’ no poema “Nênia”
de Firmino Rodrigues Silva ; nela se deram ainda as realizações literárias
iniciais de autores não paulistanos como José de Alencar, com seu “Como e por
que me tornei romancista”, Castro Alves e seu “Navio negreiro”, Raimundo Corrêa
com “Primavera”; nela ocorreu o primeiro movimento literário de vulto não
apenas em relação à cidade mas ao próprio País ,em torno da Revista da Sociedade Filomática,em 1830,constituída na então recém-criada Faculdade de Direito — a primeira manifestação
de brasilidade literária por sua consciência de fins e coesão de esforços
renovadores.
A cidade pioneira e
precursora
O retrato da História exibe a
importância capital da Faculdade de Direito, a partir de 1827, na congregação
de homens e idéias por meio da convivência acadêmica que propiciou a formação
de agrupamentos de estudantes, com idéias estéticas, manifestações literárias e
expressões próprias — deflagrando um processo vigoroso de efervescência intelectual que passou a agitar intensamente
a pequena cidade de então. Ainda que se reconheça as limitações quantitativa e qualitativa da produção desses
estudantes, não há como negar que estabeleceram a literatura como atividade
presente na comunidade paulistana.
Deu-se por ela a primeira manifestação de uma vertente poética considerada “o início
da escola brasileira” : o indianismo, desenvolvido na obra de Gonçalves Dias,
mas praticado pioneiramente no poema “Nênia”, de Firmino Rodrigues Silva,
composto entre as arcádias da Faculdade
de Direito. E exercido ainda de forma pioneira em 1844, três anos antes do Primeiros cantos , de Gonçalves Dias, em
“Cântico do tupi”, “Imprecação do índio” e “Prisioneiro índio”, do Barão de
Paranapiacaba. Evidencia-se pois que quando Dias dominou o meio literário
brasileiro, a poesia indianista -- base da obra do maranhense -- já existia e
era praticada em São
Paulo.Em 1845, com a fundação da Sociedade Epicuréia,
consolida-se um processo de produção literária estudantil, embora de qualidade
reduzida mas que viria a receber um influxo importante com a estadia de Castro
Alves, em 1868 — foi em evento da Faculdade de Direito que declamou pela
primeira vez o antológico poema “Navio
negreiro” -- quem incutiu um teor social
ao tipo de obra, sobretudo poética, que
se fazia
Por essa época, o ‘corpo acadêmico’ já
constitui um grupo social diferenciado da comunidade paulistana, a boemia e a
literatura como manifestações mais características de um segmento com
consciência grupal própria.Artistas criadores e ao mesmo tempo críticos,
nas revistas e jornais , são os
estudantes, entre os naturais da cidade e os migrantes e radicados, autores de
denúncias e protestos contra a corrupção, a hipocrisia, as injustiças da
sociedade . Na década de 1880 São Paulo acolhe também um grupo de jovens
inflamados pelo verbo eloqüente de José Bonifácio o moço , uma geração
empenhada numa luta em prol das idéias liberalistas e republicanas : Joaquim
Nabuco, Rui Barbosa, Afonso Pena, Rodrigues Alves.
A cidade modernizada e mutante
O desenrolar e desdobrar de
percursos literários que culminariam com o Modernismo foi coincidente e conseqüente de um vigoroso processo de
evolução econômica, social e urbana da cidade, e há de obrigatoriamente levar
em conta determinados ‘símbolos’ da época : o modus literário que passou a ser atuante deve necessariamente
ser visto e analisado a partir do
desenho dos cenários e ambientes em que veio a se desenrolar , que são representações significativas da própria literatura brasileira na passagem
do século XIX para o século XX.
O declínio do Império coincidiu
com a ascensão das classes médias urbanas por força do processo da
gradativa metamorfose de uma sociedade
rural para urbana.Em sua luta pela aquisição de status, segmentos da classe média passaram a prestigiar valores
essencialmente burgueses, como o saber e agilidade intelectual -- até porque já
era uma tradição,no mundo,a valorização de virtudes intelectuais, o escritor
passando a ser objeto de grande consideração social e atividade cobiçada por
muitos filhos da classe média. A valorização da inteligência -- a par de possibilitar uma
“profissionalização da literatura” --com a ascensão social por via da literatura, fez com que o escritor absorvesse
valores aristocráticos, desprovidos de visão crítica do real -- com raríssimas
exceções— e veio a comprometer, na imensa maioria dos autores , a vitalidade do
estilo, em troca do emprego de
linguagem, digamos, ‘ornamental’.
No caso particular de São Paulo — então com cerca de
240 mil habitantes na passagem do século XIX para XX, em radical mudança de
perfil demográfico, com a maciça chegada de imigrantes, já um importante centro
ferroviário, comercial, político, a indústria se implementando — o
extraordinário desenvolvimento da cidade acentua uma significativa
diferenciação social e evidencia um novo perfil de estrutura sócio-cultural, em
que a produção literária antes deflagrada pelos estudantes, passa a ser
executada por outro estamento —tornando-se manifestação de uma classe : a nova
burguesia, mais urbana e ‘industrializante’, da mesma forma que em outras
partes do País incorporando costumes segundo o modelo europeu, eivada de
academicismo art-nouveau.
Expressa-se sobretudo um certo aristocratismo intelectual,
que agrada em cheio àquela burguesia
ascendente : cristaliza-se pois um padrão estético-literário-cultural definido
pela elite social, retirados do contingente inicial dos estudantes os valores e parâmetros da produção literária.
Constitui-se, numa sociedade de classes, uma literatura ‘classista’, elitista,
convencional, integrada aos padrões de refinamento da classe dominante. Acentuam-se
então os teores de sentimentalismo e romantismo,privilegiando a ‘pureza’ da
língua, a escrita correta, o ‘apuro’, a limpidez, a sonoridade, a ‘riqueza do
vocabulário’. A literatura como meio e degrau de ascensão social
incorpora-se à sociedade paulistana por
meio dos padrões de suas classes dominantes.
Contrária a essa vertente — personificada pelos
“corifeus da bela escrita”, precipuamente, no Rio de Janeiro, Coelho Neto, Olavo Bilac, os membros da
chamada “geração boêmia” ; em
São Paulo , Francisca
Julia, Vicente de Carvalho ,Julio Ribeiro, Silvio de Almeida — poucas
vozes (ou melhor escritas ) se colocaram : notadamente Lima Barreto ,no Rio de
Janeiro, e Alcântara Machado, em
São Paulo (há de se
considerar também Amadeu Amaral, Sylvio
Floreal, em
especial Juó Bananére , e anos depois João Antonio) — que
adotaram e assumiram temática, ambientação, personagens, trama,
linguagem e estilo eminentemente populares e ‘anti-aristocráticas’.
Vale ainda considerar a tese do
historiador e ensaísta José Murilo de Carvalho a distinguir cidades
ortogenéticas -- caso do Rio do Janeiro, por exemplo -- e cidades
heterogenéticas -- São Paulo como o maior exemplo, e que veio a marcar o tipo
de intelectual e modo de produção cultural gerados pelas duas cidades .A
ortogenética é caracterizada pela função política e administrativa, com grande
peso do governo e do poder público, cidade de consumidores e não de produtores
, baseada no comércio e na escravidão .Carvalho sustenta que a
proclamação da República teria reforçado
ainda mais essa função política do Rio de Janeiro, com mais intensa ainda
presença do poder público, fazendo com que grande parte da intelectualidade se
vinculasse de alguma forma à burocracia pública, em geral como funcionários do
governo federal : e se tal fato não “introduzia necessariamente uma perspectiva
governista na obra desses autores”, frisa ele, “certamente constituía limitação
à sua liberdade de criação”. De outro lado, a quase obrigação que se impunha ao
Rio de passar a imagem civilizada do
país fazia com que seus intelectuais tivessem grande dificuldade em compreender
perfeitamente a realidade do País e da cidade — daí as contradições e bloqueios
que se interpunham no caminho da criatividade dos intelectuais, a cidade não
conseguindo produzir uma cultura moderna/modernista. Diferente de São Paulo.
A cidade heterogenética, que São Paulo exemplifica,
estava fora do centro do poder político, caracterizada como cidade de
produtores, com maior liberdade de criação, maior iniciativa cultural, com
predomínio da atividade econômica e comercial e não política e administrativa —
somado ao fato de que nunca teve grande presença escrava Em contrapartida, a
intelectualidade paulista era muito menos vinculada ao Estado, e era na verdade
patrocinada pela própria oligarquia local -- muitos dos intelectuais eram aliás
eles mesmos membros da oligarquia. A independência em relação ao Estado lhes
dava maior liberdade de criação Além disso, havia maior homogeneidade social
entre a intelectualidade paulista, e isso propiciou a São Paulo maior
possibilidade do que o Rio de Janeiro de
desenvolver um projeto cultural ,mais consistente e ‘autônomo’ : na Paulicéia,
houve “melhor condição de um trabalho intelectual em cima da realidade social
concreta”.
O Modernismo de 1922
expressou um esforço para retirar à literatura o caráter de classe -- dado pela
elite social e cultural pós -1890 -- transformando-a em bem comum a todos. Como
o Romantismo, o Modernismo é de todas as correntes literárias brasileiras a que
adquiriu tonalidades especificamente paulistanas. Antonio Candido sentencia que
“se em São Paulo
não tivesse havido os escritores do período clássico, do Naturalismo, do
Parnasianismo, do Simbolismo, a literatura brasileira teria perdido um ou outro
bom autor, mas nada de irremediável. Se tal acontecesse no Romantismo e no
Modernismo, o Brasil ficaria mutilado de algumas de suas mais altas realizações
artísticas, de obras culminantes como Macário e Macunaíma, por exemplo. Dois momentos paulistanos, dois momentos em
que a cidade se projeta sobre o País”.
Nos primeiros anos do século XX, quando novas correntes
artísticas começaram a circular pela Europa,a maior parte do mundo ocidental
encontrava-se em meio a transformações sociais, políticas, econômicas,
tecnológicas e culturais que alteraram radicalmente a forma de viver e de
sentir o mundo. Invenções revolucionárias como o rádio, o telefone, o automóvel
e o cinema passaram a fazer parte do cotidiano das grandes cidades, cada vez
mais urbanizadas. A industrialização modificara a economi das potências, e os
lucros acumulados pela produção em larga escala de artigos manufaturados
garantiam tamanha sensação de conforto,
segurança e otimismo em relação ao futuro, que o período ficou conhecido como belle
époque — uma época de efervescência artística sem precedentes. Mas no
extremo oposto,para as classes trabalhadoras o tempo era de lutas por melhores
condições de vida e, no plano internacional um conjunto de fatores econômicos e
políticos levaram à eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. O Brasil vivia
então período de grandes mudanças, com a urbanização e a adoção de novas
tecnologias que transformavam o ritmo de vida e o cenário das grandes cidades,
e que pareciam alterar a percepção do mundo. O intenso crescimento urbano e
industrial, acelerado desde o começo do século, e a chegada em massa de imigrantes,
principalmente italianos, muitos dos quais haviam vivido a experiência da luta
de classes em seus países, propiciando inclusive a difusão de idéias
anarquistas e socialistas, fizeram com que o proletariado crescesse e se
organizasse : nas primeiras décadas do século XX ocorreram várias greves
em São Paulo , a maior delas em 1917 - mesmo ano da
Revolução Russa. Nos primeiros anos do século XX vieram radicais transformações
políticas, com acontecimentos decisivos para a vida nacional, como as revoltas deflagradas
pelo movimento tenentista ( julho de 1922 no Rio de Janeiro; julho de 1924 em São Paulo ),a Coluna
Prestes, a fundação do Partido Comunista, a derrocada da República Velha, das
oligarquias rurais e da "política café-com-leite", o início da Era Vargas.
É nesse contexto de crises e incertezas que surgiram as
correntes de vanguarda (do francês avant-garde, "o que marcha à
frente"), entre elas o Futurismo, o
Cubismo, o Dadaísmo, o Expressionismo, o Surrealismo, recebidas com entusiasmo
por escritores que procuravam renovar as formas de expressão artística. Muito antes de 1922 os artistas participantes
da Semana já produziam obras influenciadas pelas novas correntes européias,
como a publicação, em 1917, de diversos livros de poemas em que jovens autores
buscavam uma nova linguagem, ainda não bem realizada., em Nós, de Guilherme de Almeida; Juca
Mulato, de Menotti del Picchia; Há
uma gota de sangue em cada poema, de Mário de Andrade — e a célebre
exposição de Anita Malfatti, em 1917, duramente criticada por Monteiro Lobato
no famoso artigo “Paranóia ou mistificação ?”
A Semana de Arte Moderna de
1922 foi o fato concreto que definitivamente integrava o Brasil no contexto
filosófico-estético-cultural do século XX
e levava-o a inserir-se nas coordenadas culturais, políticas e
socioeconômicas dos novos tempos —o mundo da técnica, o mundo mecânico e
mecanizado. A partir dela caminha o movimento modernista em busca de padrões
autônomos e formas autênticas para a criação estética nacional -- e não somente
no âmbito artístico : da mesma forma no campo do pensamento social, os
intelectuais procuravam estabelecer novos modos de se tratar e compreender a
cultura e a história do Brasil, estabelecendo novas interpretações e valores
para a identidade nacional e dando início à consolidação institucional do
pensamento sociológico brasileiro. Gerou sobretudo um estado permanente, latente , criativo,
estimulante, instigante, de inquietação intelectual, e iniciou um processo de
unificação cultural sem precedentes no Brasil.
Fica
para a História o depoimento de Mário de Andrade:
"A Semana de Arte
Moderna dava um primeiro golpe na pureza do nosso aristocracismo espiritual.
Consagrado o movimento pela aristocracia paulista, si ainda sofreríamos algum
tempo ataques por vezes cruéis, a nobreza regional nos dava mão forte e... nos
dissolvia nos favores da vida. Está
claro que não agia de caso pensado, e si nos dissolvia era pela própria
natureza e o seu estado de decadência. Numa fase em que ela não tinha mais
nenhuma realidade vital, como certos reis de agora, a nobreza rural paulista só
podia nos transmitir a sua gratuidade. Principiou-se o movimento dos salões. E
vivemos uns oito anos até perto de 1930, na maior orgia intelectual que a
história do país registra. (...) se alastrou pelo Brasil o espírito destruidor
do movimento modernista. Isto é, o seu sentido verdadeiramente específico.
Porque, embora lançando inúmeros processos e idéias novas, o movimento
modernista foi essencialmente destruidor.".
A "destruição" tinha como objetivo, em um
primeiro momento, o rompimento com estéticas passadas, especialmente a
parnasiana — em oposição ao rigor gramatical e ao preciosismo lingüístico
parnasianos, os poetas modernistas valorizavam a incorporação de gírias e de
sintaxe irregular, e a aproximação da linguagem oral de vários segmentos da
sociedade brasileira— e mais: a preparação de um terreno onde se pudesse
reconstruir a a cultura brasileira, sobre bases nacionais, a realização de uma
revisão crítica da história e das tradições culturais do país. Os autores do
Modernismo procuraram no índio e no negro
os elementos primordiais da cultura brasileira que proporcionariam a
reconstrução da realidade nacional, e procuraram retratar a mistura de culturas
e raças existente no país.
Porém, o nacionalismo, a mais marcante característica do
Modernismo, iria separar ideologicamente os adeptos do movimento, opondo os
grupos “Pau-Brasil”,e depois “Antropofágico”(que incorporva o comunismo, o
freudianismo e o matriarcalismo), de
Oswald de Andrade , Raul Bopp e Tarsila do Amaral , e o “Verde-Amarelismo , de Menotti del Picchia,
Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. Estudiosos
sustentam que a verdadeira ‘revolução’ modernista se deu mesmo em 1924, ano do rompimento de Graça Aranha com a Academia Brasileira de Letras, ano do
“Manifesto Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, anos de dois textos fundamentais
de Mario de Andrade : A escrava que não é Isaura — a ‘teoria’ do
modernismo compendiada - e seu livro
mais ousado, em termos formais, Losango caqui.
Em seguida, 1928 marca a publicação de Macunaíma,
de Mario de Andrade, máxima obra literária do movimento, excepcional
romance-retrato do Brasil de grande miscigenação cultural — as tradições
culturais indígenas dos primórdios ao lado da modernidade europeizada dos
centros urbanos brasileiros da época — e
de Retrato do Brasil, de Paulo Prado, inaugurando o ensaio de
cunho ao mesmo tempo histórico e sociológico que abriria caminho para o grande
ciclo de “interpretações do Brasil”.À renovação estética modernista,na década
de 1920, alia-se no decênio seguinte o
ensaio de interpretação e crítica social, que tenta recontar o processo de
formação histórica do país: a procura da identidade social passa igualmente
pela busca premente de uma ponte entre uma completa renovação cultural e a
reforma da sociedade, uma ponte entre a modernidade e a modernização do país .
O ano de 1930 é a época de instauração do Estado
Novo, que se ‘apropria’ ideológica e retoricamente do Modernismo — Getulio Vargas declarava em seu
discurso de posse: “As forças
coletivas que provocaram o movimento revolucionário do Modernismo na literatura
brasileira foram as mesmas que
precipitaram no campo social e político a Revolução de 1930” (seguindo uma sugestão formulada por Cassiano
Ricardo) — mas inicia um período de intensa fermentação política, social e cultural. É na primeira metade dessa
década que nascem as primeiras tentativas
de interpretação de conjunto da história, da economia e da sociedade brasileira.Sobretudo
a prosa literária se desenvolve,
ficcionalmente no romance e no conto, que retratam decadência da aristocracia
rural, a formação do proletariado urbano, a luta do trabalhador, o êxodo rural,
as cidades em rápida transformação — os cenários para a expansão e proliferação
dos ensaios de interpretação do País, de Gilberto Freyre , Paulo Prado (Retrato do Brasil), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do
Brasil) ,Caio Prado Júnior (Formação do Brasil contemporâneo), todos
lastreados pela ‘índole’ modernista em busca da síntese explicativa dos
múltiplos aspectos da vida social brasileira e de seu desenvolvimento
histórico.
Acima de tudo um processo de mudança cultural geral,
em direção a uma nova reconstrução sócio-política da identidade nacional, o Modernismo
“difunde-se no tempo, balizando grande parte dos sequentes debates
intelectuais, espalha-se no espaço, o poderoso ímã da literatura interferindo
com a tendência sociológica, dando origem àquele gênero misto de ensaio,
construído na confluência da história com a economia, a filosofia ou a arte,
que é uma forma bem brasileira de investigação e descoberta do Brasil”, sentencia Antonio
Candido. Irradiante
, difuso e difusor, o Modernismo modelou substancialmente a literatura
brasileira no século XX e desdobrou-se pelas décadas seguintes em irreversível processo de amadurecimento : uma terceira fase do movimento,na busca de uma nova linguagem,
que expressasse os anseios de renovação do pós-guerra, veio na denominada
“geração de 1945” ,
depois, na Poesia Concreta, da mesma forma na Poesia-Práxis , na atual
narrativa em prosa — caracterizada esta
por novas formas de linguagem , ora
intensa e ágil, ‘cinematográfica’ , ora densa e introspectiva, ‘filosófica’,e
pela preponderante ambiência urbana retratando “a vivência vertiginosa nas
grandes cidades”, confluiu no último decênio do século XX e no despontar deste
Terceiro Milênio para o irreversível despontar
de uma nova geração de escritores, que abre espaço na literatura
brasileira com uma marcante característica vetorial : o deslocamento maciço do eixo
principal da nova criação literária para
São Paulo.
Na cidade, os novos e novíssimos ficcionistas
exercem sua prosa “de estrutura desconstrutivista , subversiva da linearidade,
de narrativa fragmentada, quebradiça, de temática citadina, com os elementos da
urbanidade pós-moderna , as tensões sociais e os conflitos individuais, o
envolvimento pela violência urbana , os impasses existenciais — fomentando uma produção literária como não é
feita em nenhuma outra cidade do País.
A São Paulo heterogenética continua abrigando
escritores, naturais ou imigrantes, paulistas ou radicados, que produzem uma
literatura ímpar, diferenciada, atualizada com os elementos da realidade,
afinada com a modernidade, determinante — hoje como ontem, e desde sempre — da
própria cultura brasileira.
réquiem a Niemeyer : AS CIDADES - IV
Petrópolis, também cidade
literária
Petrópolis não é apenas cidade de
cunho histórico, político, institucional,
verdadeiras ‘capital social’ do
Brasil no século XIX,tendo sido de fato a capital administrativa do Império –
cenáculo não apenas de residência ou hospedagem de figuras proeminentes do
governo e administração pública,homens de Estado ( em Petrópolis, o então
presidente Hermes da Fonseca casou-se
com Nair de Tefé, em 1910; o presidente Nilo Peçanha mantinha
casa de veraneio ,assim como o presidente Washington Luís -- tradição,
seguido por presidentes como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Fernando
Henrique Cardoso), inclusive estrangeiros (em 1861, Maximiliano da Áustria, que viria a ser imperador
do México, visitou o Palácio Imperial, e ao longo da história da cidade, outras
autoridades estrangeiras marcariam
presença: Balduíno da Bélgica,em 1920 ; Carol I, da Romênia,em 1944; Olavo V,
da Noruega, em 1967 ; os reis da Suécia,
Gustavo e Sílvia,em 1984; em 1913 o então ex-presidente norte-americano
Theodore Roosevelt, tal como os
presidentes da Bolívia, Henrique Peñarada e o do Paraguai, Higino Moringo,ambos
em 1943; representantes dos Estados americanos se reuniram na cidade em
setembro de 1947, na Conferência Interamericana de Manutenção da Paz, no Hotel
Quitandinha -- encontro que contou, entre outros, com as presenças de Harry
Truman, presidente dos EUA, e de Evita Perón, que chefiou a delegação
argentina)., diplomatas, até mesmo cientistas (os físicos Albert Einstein e Guglielmo
Marconi, respectivamente em 1925 e em
1935; o
cientista Peter Medawar, prêmio Nobel de Física em 1954, de ascendência
britânica, nasceu em Petrópolis em 1929 e morou na cidade até os 14 anos de
idade),e da própria ocorrência de fatos
e eventos que marcaram a História brasileira tanto do século XIX como do século
XX (Petrópolis passou a ser a capital fluminense em 1893 – ano da Revolta da Armada, quando a cidade do Rio de Janeiro ,então
capital da República, foi bombardeada e declarada a fragilidade
da então capital do Estado do
Rio, Niterói -- até 1903).
Histórica, política,
institucional – mas Petrópolis é também autêntica ‘cidade literária’ – no
acolhimento, permanente ou temporário, corrente ou circunstancial, de uma
plêiade significativa de escritores, literatos,intelectuais, a ela ligados de
uma forma ou de outra, que aqui residiram\residem, aqui estiveram, aqui
mantiveram residência, etc.,e nela,ou inspirados nela,ou nela ambientadas,ou a
ela referenciadas, conceberam,
idealizaram,criaram e produziram obras ficcionais e não-ficcionais, textos em
prosa e em verso, contos e novelas, crônicas e peças teatrais,ensaios e
registros memorialísticos, discursos e
conferências.
O papel da cidade na criação
literária de escritores é tão incontestável, tamanha sua conotação, ou ‘força’
literária emanadas, que um dos maiores da Literatura Brasileira, Machado de
Assis, que aqui nunca esteve ‘de corpo presente’ foi justo um dos que mais
escreveram sobre ela,mais citou-a tanto
em contos,romances e crônicas – além de nela ambientar sua primeiríssima peça
teatral,”Desencantos”, de 1861, e de publicar alguns de seus primeiros poemas
em 1858 e em 1859 no jornal petropolitano O Parahyba, aliás periódico
importantíssimo na história da imprensa brasileira,ainda não devidamente
estudado (preparo um livro especial sobre o tema). José de Alencar, freqüentador assíduo,
escolheu a cidade como ambientação de
passagem de sua primeira obra ficcional, a novela Cinco minutos, de 1856;
Joaquim Manuel de Macedo,ainda que visitante raro da cidade, escreveu alentado
conjunto de crônicas,em forma de cartas – sob o título geral de “Viagem a
Petrópolis por?” - no jornal A Nação,em
abril-junho 1853; Joaquim França Junior,
que muito aqui esteve, ambientou a cidade em duas de suas peças, uma delas “De
Petrópolis a Paris” infelizmente perdida;
Olavo Bilac, “príncipe dos poetas brasileiros”, expressou numa crônica
todo seu encantamento com a cidade, enaltecida sua beleza e ‘pureza’ para
contrapor-se à hipótese de vir a ser capital do estado do Rio de Janeiro, como
cogitado à época.
Petrópolis, se não berço de
nascença, caso de Raul de Leoni, foi a cidade eleita para vivência – longas
temporadas, veraneio e férias, residência final – por poetas de diferentes
épocas e gerações, de Raimundo Correa a Manuel Bandeira, de Vinicius de Moraes
a Dante Milano e Fernando Py. E viu
nascer em 1932, e aqui viver por muito tempo, a escritora Sylvia Orthof,
premiada nacional e internacionalmente por suas extraordinárias obras infanto-juvenis.
Alguns dos mais influentes
pensadores brasileiros encontraram aqui o cenário ideal para produzir páginas
importantes do ensaísmo histórico, político ou cultural – caso de Ruy Barbosa,
um dos maiores intelectuais e figura política proeminente da história
brasileira,que inclusive morreu em 1923 em sua casa petropolitana na avenida
Ipiranga(chamada carinhosamente por ele de “Sweet Home”), e aqui escreveu por
exemplo a maior parte das conferências que pronunciou em sua segunda memorável
campanha presidencial(de 1909), em 1917 fez seu célebre discurso incentivando o
alinhamento do Brasil com os aliados no Teatro de Petrópolis, concluiu a famosa
“Oração aos moços”,de 1920, e também a introdução do primeiro volume da obra
Queda do Império,de 1889; Joaquim Nabuco, em cuja casa na avenida Piabanha escreveu alguns de
seus Pensamentos soltos, que veio a ser publicado em Paris em 1901; o barão do
Rio Branco (José da Silva Paranhos)
elaborou em sua residência de
verão, localizada na rua que hoje leva
seu nome, e na cidade foi assinado em 1908 o Tratado de Petrópolis, que
demarcou as fronteiras com a Guiana
Holandesa e a Bolívia e incorporou ao
Brasil, o território do Acre; Alceu
Amoroso Lima,nascido no Rio de Janeiro
em 1893, radicado em Petrópolis – sua residência, na rua Mosela, hoje é o
Centro Cultural Alceu Amoroso Lima e
seu pseudônimo Tristão de Atayde denomina o centro cultural
da Prefeitura , localizado na praça Visconde de Mauá -- e aqui falecido em 1983
, tornou-se por várias décadas o mais influente pensador católico em atuação no
país.
A cidade ofereceu as condições e
circunstâncias para que Jorge Amado concluísse,
em seu apartamento no antigo hotel Quitandinha, o romance Gabriela,
cravo e canela.,e escrevesse partes de outras obras; para Alberto Santos Dumont
elaborar aqui seu segundo livro, o autobiográfico O que eu vi.O que nós
veremos, em sua bela residência denominada “A Encantada”, hoje ponto de atração
turístico-cultural -- também na casa teria sido escrito, por volta de 1902, um
manuscrito de 312 páginas ,recentemente descoberto por familiares,no qual
destacam-se trechos sobre o sonho de virar aeronauta e o encontro com Thomas
Edison.Abrigou o escritor austríaco Stephan Zweig durante os anos 1940, vindo
da Alemanha sob o jugo hitlerista, para
aqui escrever sua autobiografia O mundo que eu vi, a novela O jogador de xadrez, e sobretudo
criar e publicar sua famosa obra Brasil, país do futuro,em 1941. Acolheu a
poetisa chilena Gabriela Mistral, então consulesa do Chile (ao longo da Iª
República, de 1889 a 1930, cerca de 30 países mantiveram consulados
em Petrópolis, entre eles Inglaterra,
França, Itália, Alemanha,
Rússia , Estados Unidos, Portugal,
Uruguai,Chile, Noruega, Santa Sé.),durante a década de 1940, quando foi
agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura -- única mulher na América Latina a
ser contemplada..E recebeu, por diversas vezes, na Samambaia, a escritora
inglesa Elizabeth Bishop, amiga da arquiteta, paisagista e artista Maria Carlota
Costallat de Macedo Soares(Lota).
Não há como deixar de se realçar a
importância cultural de Petrópolis, mostrando contribuições e manifestações
literárias e artísticas talvez pouco conhecidas ou mesmo desconhecidas por
muitos, a proporcionar o pleno conhecimento desse aspecto marcante da cidade,
expresso por escritores naturais ou não,
residentes ou não, hóspedes ou visitantes,privilegiados pela tradição
petropolitana de acolhida e reconhecimento, que com ela interagiram,e
interagem, literariamente, num significativo painel de autores de extrema
qualidade que contribuíram, e contribuem,por meio da Cidade Imperial, para a
própria história literário-artística do Brasil.
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