quinta-feira, 13 de maio de 2010

O cinema vai à literatura(e a literatura se vale do cinema)


Abrem-se as cortinas e projeta-se na tela mais um Festival de Cinema de Cannes. Excelente oportunidade para examinar as relações entre cinema e literatura .


Eventos como o Festival de Cannes -- e de resto, festivais regularmente realizados em distintas cidades,temáticas e enfoques, a entrega do Oscar, etc -- são excelentes por permitir uma reflexão sobre a sempre vigente relação literatura-cinema , com suas interseções, confluências ...e divergências . Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas relações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates, acusações de “infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação, etc.-- até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos códigos e modos de funcionamento : narrativa literária e narrativa fílmica distinguem-se e na maioria dos casos contrastam- se; são sempre difíceis as transposições de uma para o outro, pois as características intrínsecas do texto literário -- originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaboramentos -- por princípio não encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.
A par das diferenças, entre a página e a tela há laços estreitos -- em forma de ‘mão e contra-mão’ : a página contém palavras que acionarão os sentidos e se transformam na mente do leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento que serão decodificadas pelo expectador por meio de palavras.Entre a literatura e o cinema, há um parentesco originário, diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos processos tecnológicos. Assim, a enorme e expressiva influência da literatura sobre o cinema tem sua contrapartida, por meio de um ‘cinema interior ou mental’ sobre a literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao advento dos artefatos técnicos.
Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações mais ousadas, como a "Avant-Garde" francesa da década de 1920, ou o surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.
Daí, adaptar para o cinema ou para a televisão — meios reconhecidamente ligados à cultura de massa — obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, para citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional — equivale a trazer para as mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns, tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão -- meios que privilegiam a linha narrativa — também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em empreendimentos insatisfatórios.
Não se pode negar que, principalmente em seu período clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela, tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores como William Faulkner, Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, , James Age,Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me dizem para fazer; é um emprego, e pronto."
“A literatura e cinema não são tão distantes assevera o pesquisador e professor do departamento de espanhol e português da University of California (UCLA), Randal Johnson – com quem tive oportunidade de conversar quando de sua estadia no Rio de Janeiro, em 2008, convidado pelo Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação (ECO-Pós) da UFRJ em parceria com o Globo Universidade para ministrar uma disciplina compactada sobre Cinema, Literatura e TV. Para ele, as relações entre cinema e literatura não se limitam às adaptações do texto escrito para a tela, apontando três outros importantes pontos de encontro. O primeiro seria os filmes feitos sobre escritores – de que gradativamente proliferam os exemplos : agora mesmo Clint Eastwood confirma seu projeto de uma biografia fílmica de Mark Twain ;outro, seria o uso estrutural ou incorporação de textos literários no discurso cinematográfico – esta indubitavelmente a ocorrência maior, de que Stanley Kubrick, p. ex.,é um dos maiores artífices ; e também o encontro da literatura e do cinema poderia se dar através de referências como alusões literárias nos diálogos e citações implícitas ou explícitas, visuais, orais ou escritas diretamente na tela – um expediente cada vez mais recorrente na produção contemporânea. Por outro lado, Johnson critica enfaticamente a valorização do texto literário sobre o discurso cinematográfico, sustentando ser muito comum entre os espectadores uma exigência de fidelidade do filme ao livro. “A questão da adaptação como um problema só ocorre em determinadas circunstâncias, não ocorre, por exemplo, quando a obra literária não é conhecida” . A insistência na fidelidade da adaptação cinematográfica à obra literária originária,pode resultar em julgamentos superficiais que freqüentemente valorizam a obra literária em detrimento da adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes são julgados criticamente porque, de um modo ou de outro, não são “fieis” à obra modelo. O conceito, de ‘fidelidade’ assume conotação crucial,tornando-se na discussão\reflexão do relacionamento entre cinema e literatura, no chamado ‘x da questão’ : tudo, a rigor, gravita em torno disso.
Às vezes a mais fiel das adaptações faz o pior dos filmes, porque o material não se presta a uma história filmada e, na forma como está escrito, não funciona na tela, por mais forte que seja a história no original.
Esse freqüente discurso da fidelidade,diz o professor, “carrega insinuações de um pudor vitoriano e se baseia na crença difundida de que a literatura é superior ao cinema, um preconceito devido ao fato da literatura ser anterior no tempo ao cinema, o que pode levar à idéia de que o livro é historicamente mais nobre e o filme secundário -- além evidentemente do “pensamento dicotonômico de que cinema e literatura são rivais a partir da crença na idéia de que o filme adaptado suga e destrói o que é essencial no livro”.A dicotomia,portanto,não existiria, porquanto “a linguagem escrita sempre esteve no cinema, desde os filmes mudos com as cartelas que continham as falas e pensamentos dos personagens, não sendo uma arte melhor nem pior que a outra”, conclui Johnson.
Na verdade, desde que o cinema é cinema, a literatura tem sido um de seus pontos de partida – haja vista, sabemos, o quanto os já à época denominados “filmes de arte” (essencialmente franceses) do início do século XX procuravam se legitimar como obras sérias e eruditas a partir de textos clássicos e intérpretes teatrais. As relações entre o cinema e a literatura são tão fortes que alguns estudiosos chegam a afirmar a sua existência antes mesmo do surgimento do cinema. Para isto evocam uma teoria limite, segundo a qual há uma essência do cinema, de um “pré-cinema” embutido em alguns textos literários anteriores à forma de expressão cinematográfica, e que teriam como especificidade o fato de os escritores ordenarem o relato em função da incidência do olhar do narrador, da sua ‘ocularização’ da cena a narrar. Desse modo, a narrativa cinematográfica já se encontrava latente em alguns textos narrativos literários e o surgimento do cinema no final do século XIX foi apenas a “descoberta da tecnologia que permitiu concretizar o modo narrativo que enfatiza a visualização perceptiva da imagem de uma cena”, sentencia Jorge Urrutia em “El cine filológico”( in Discursos, n. 11-12.Coimbra: Coimbra: Universidade, 1998).
E desde então, a relação logo passou a trilhar indissolúvel (sic) mão dupla, quando literatos e dramaturgos começaram a se inspirar no cinema para formar narrativas em prosa e em poesia. A rigor, as diferenças entre textos literários e filmes neles apoiados são marcadas por historicidades específicas de cada linguagem --- ísto é, o tempo histórico que cada um retrata (um filme realizado na década de 2000 abriga um relato literário escrito ou passado em 1890 , ou em 1950, etc ) : e o momento histórico de cada um é que se constitui faceta que conduz a inevitáveis diferenças. Nenhum filme ‘repete’ uma obra literária, nenhuma obra literária ‘repete’ um filme, quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e circulação de cada um de seus produtos.
Essa intrínseca, dialógica e dinâmica relação nasce no momento em que o cinema descobre seu potencial digamos literário , ao absorver o modelo narrativo do romance do século XIX a subsidiá-lo para melhor contar histórias – malgrado podermos hoje levantar a reflexão em plena era da imagem digital em que vivemos : o cinema continuaria ‘preso’ a um modelo narrativo já ,em maior ou menor grau, superado pela própria literatura? Em 2003, o (excepcional) cineasta inglês Peter Greenaway disse, numa entrevista, que “a maior parte do cinema feito hoje é uma ilustração de romances do século XIX” .Se o cinema beneficiou-se do romance do século XIX, por que na era da imagem digital, quando a capacidade plástica do cinema atinge seu ponto mais alto, continuam-se a ilustrar romances do século XIX?
O certo é que naquele tempo era “a arte dos novos tempos, arte de e para as massas”, com o nascimento de um novo olhar sobre um novo homem nascido na virada de um século para outro, um novo homem que precisava de uma nova forma de expressão – e nada como a sedução da imagem para tal. O escritor e cineasta africano Ousmane Sembene declarou que, quando a palavra não atingia seu público, ele usava o cinema para enviar sua mensagem. O cinema, para ele, não é um meio em si, mas um veículo, como o livro. Não importa o suporte, mas a mensagem. E assim, a forma é sacrificada pelo conteúdo. A clareza é uma das regras básicas para a sedução no cinema, o que fere as regras da própria sedução, que é cheia de desvios, sombras e não-ditos. Talvez Sembene não seja o melhor exemplo, pois seu cinema, apesar de ser usado como suporte, não faz parte do grande sistema, daquilo que se convencionou chamar “cinema industrial”. Mas, o que nos interessa aqui é ver um escritor, que é também cineasta, dizer que o que produz são idéias e não importa o meio em que elas chegarão ao seu público -- desde que possam ser compreendidas.
Em muitos casos, o cinema não é um suporte apenas, mas é a própria mensagem do realizador, e nenhum outro suporte poderia substituí-lo.
Examinado detidamente com isento rigor crítico, no campo da narrativa, em sua já longa história, o cinema não sofreu muitas variações – malgrado certas exceções, como experimentos ‘de vanguarda’ – e vem à mente, por aproximação etimológica, a “Nouvelle Vague” da década de 1960 , que se propunha a romper com a lógica linearizante da estética e da narrativa fílmica de até então, inspirada num congênere da seara literária, o “nouveau roman”—ambas dialogando entre si pelas respctivas técnicas narrativas, num movimento de realimentação recíproco entre as duas linguagens.
Convém não esquecer,entretanto, que sob a égide de suas afinidades com a cultura literária, se o cinema europeu tendia, então, a se afastar do modelo romanesco tradicional, a indústria cinematográfica hollywoodiana, voltada para o entretenimento, consolidou-se seguindo padrões já consagrados da narrativa literária – levando Jorge Luis Borges a observar que, com os westerns, “Hollywood, por razões comerciais, naturalmente, salvou a épica, num tempo em que os poetas tinham esquecido que a poesia começou pela épica”.Tanto uma quanto o outro buscando ultrapassar as limitações formais e “não procurando ordenar o caos”, ao contrário, o caos tornando-se o princípio da criação. Os cineastas da “Nouvelle Vague”,p. ex., queriam mostrar que nem tudo faz sentido e que os caminhos são múltiplos; e por fim aquilo que Jean Cocteau afirmou sobre o cinema pode agora se efetivar, pois para ele, os filmes só seriam bons quando fossem acessíveis como uma caneta e um papel.
Contudo, há de se atentar para um outro viés ,uma espécie de contra-mão no processo de interação cinema-literatura, no caso um contrafluxo mediado, executado,e recentemente cada vez mais incentivado pelo setor editorial e mercado livreiro – nos quais dá-se o crescente movimento de publicação de livros motivados... pelo cinema :roteiros de filmes, diários de filmagens, histórias sobre a elaboração de filmes(making-of), edição ou reedição de obras literárias abrigando imagens e outros elementos iconográficos que remetem para os filmes realizados a partir da adaptação da obra para o cinema – uma subversão das relações entre cinema e literatura. De resto, uma tendência à qual avolumam-se questionamentos sobre até que ponto sinaliza tanto ‘perda de prestígio’ e ‘distorção\vulgarização’ da matéria literária, como sobretudo ‘dessacralização’ da literatura, tênues que se tornam cada vez mais as fronteiras entre ela e outros tipos de bens culturais que circulam pela mídia.e no seio de consumo da sociedade.
Na década de 1960, McLuhan chamava a atenção para o fenômeno de interpenetração entre diferentes mídias, destacando que, para a indústria cinematográfica hollywoodiana, um best seller era como um “jorro de petróleo ou indício de ouro”, isto é, os banqueiros de Hollywood farejavam, neste tipo de livro, grandes lucros para o cinema, uma garantia de sucesso de bilheteria. Além de já ter sido aprovado pelo gosto popular, o best seller ainda emprestaria ao meio cinematográfico a “superioridade do meio livresco”. É dessa época e desse processo a intensificação da arregimentação de escritores norte-americanos – dos melhores e mais significativos de suas gerações – não só como ‘fornecedores e alimentadores’ da produção cinematográfica hollywoodiana mas também como roteiristas ‘intensivos’.
Das mesmas forma e diapasão e desse processo decorrente, deflagra-se ao longo da segunda metade do século XX,por parte e ação do setor editorial ,a contrapartida à incorporação da obra literária,fosse best seller ou não – muitas criadas especificamente para se transporem à tela – pelo cinema , com o relançamento de romances adaptados e especialmente com a publicação de roteiros .
Neste particular, a relação entre texto literário e roteiro é assinalada pelo escritor argentino Ricardo Piglia , ao afirmar que a novela do século XIX está hoje no cinema e “quem quiser narrar como Balzac ou Zola deve fazer cinema”, acrescentando, que “quem quer narrar como Dumas deve escrever roteiros”. Para ele, o roteirista seria uma espécie de versão moderna do escritor de folhetins, porque escreve por encomenda e por dinheiro e a toda velocidade uma história para um público bem preciso que está encarnado no produtor ou no diretor, ou nos dois. A observação de Piglia, referindo-se à transferência da narrativa de ficção do suporte impresso do jornal, na forma de folhetim, para as telas, faz lembrar o fenômeno, iniciado na década de 1940 nos EUA, do incremento dos escritores roteiristas, que se “alugam para sonhar” ,reportando-nos ao título “Me alugo para sonhar” de um conto de Gabriel García Márquez, de 1992.
Toda a literatura poderia, então, ser considerada como texto básico para um filme, e na direção oposta, parece que o cinema vem buscando cada vez mais o espaço do livro, no que o mercado editorial explora o filão das publicações derivadas de filmes.
No ‘umbelical’ -- nada dicotômico, portanto --relacionamento do cinema com a literatura, podem ser extraídos, ou inferidos\induzidos, alguns elementos como : a) uma obra literária de grande repercussão é meio caminho andado para gerar um filme de grande repercussão – e alguns cineastas, Kubrick p.ex.sobressaía-se nisso, são exímios em realizar filmes-evento, inscritos na agenda cultural de seu tempo; b) mas ´por vezes os componentes de um grande romance podem ser impróprios para a realização de um filme baseado nele – a corroborar a sentença de Kubrick “livro é livro, filme é filme”.
No viés contrário, também se dá a influência do cinema sobre a literatura. Henry Miller, talvez ironicamente, chega a saudar a substituição da literatura pelo cinema: “O cinema é o mais livre de todos os meios de comunicação, pode-se realizar maravilhas com ele. De fato, eu iria saudar o dia em que os filmes substituíssem a literatura, quando não houvesse mais necessidade de ler”(in Os Escritores- 2: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1989).Mas tanto ele quanto nós todos sabemos,a par da integração mútua, da ‘independência’ entre ambas e que jamais uma poderá substituir a outra.
Por outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas e roteiristas via de regra imprimem a suas narrativas muito mais o teor, o timbre, o ritmo, o timing fílmico -- e menos literário. E além disso, mesmo que sua estória e trama seja de ação,de movimento, costumam lidar com o onírico, o sonho , e com o psicológico -- que é, sabemos, elemento recorrente ao extremo no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de Bergman a Buñuel, de Resnais a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são eles antes e acima de tudo pessoas do cinema.

Quase sempre nesses exercícios literários de cineastas e realizadores cinematográficos ocorre que
· a narrativa se faz em quadros, planos (longos , médios, curtos) e fotogramas , como num filme -- e qual angulações e diferentes tomadas, utilizam mudanças de foco narrativo ( de resto, recurso também comum e genericamente usado na literatura)
· a narração geralmente corre veloz, fatos se dão e são relatados quase que a galope , denota-se certo açodamento : só que no cinema a ação é rápida e a passagem de tempo ‘invisível’ para o espectador -- mas não o é para um leitor; nos escritos de cineastas, de uma seqüência chega-se a outra sem intermediações, nem explicações , contando com a imaginação do leitor
· na maioria dos casos,os personagens são desenhados superficialmente, sem o esmero e detalhamento descritivo comum à literatura -- mas como no cinema, um retratar rápido e sumário (já que o espectador vê) como se o leitor os estivesse vendo em imagem, numa tela de cinema ou de tv, e não delineando-os na imaginação; os personagens são moldados, agem e comportam-se como atores, que são vistos na tela, prontos, sem necessitar de muita elaboração
· assim também com as situações, fatos e com a própria ação : mesmo as reflexões e indagações que por exemplo um narrador faça, a respeito da natureza e do comportamento de personagens,
· como que a analisá-los, aparecem como que anotações geralmente feitas em meio ou à margem do texto de roteiro cinematográfico.

Ora, em literatura tudo há de ser elaborado de acordo com os métodos próprios e intrínsecos à escrita ficcional. Na maioria das vezes, o texto literário de gente do cinema carece, em sua construção, de uma ‘personalidade’ própria, ficando a meio-caminho entre o cinematográfico e o literário : entre altos e baixos, persegue uma certa ilusão de fusão de formas, meios e linguagens.“O romance , na verdade, sempre foi uma forma literária propensa ao diálogo com outras linguagens”, ensina o professor Flávio Carneiro, da UERJ, autor de Da matriz ao beco e depois, e o cruzamento da literatura com outras formas artísticas tomou um novo rumo, na década de 1980 , com a produção de obras que “ incorporam ao universo romanesco a linguagem do cinema, da televisão”.
Tudo isso propicia um exercício de reflexão e indagação: as incursões de cineastas e de profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas ? O caso é que um diretor de cinema ou de tv quando vai à literatura leva com ele uma bagagem da linguagem -- o ritmo, o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador -- e assim comete pecados e pecadilhos marcantes ( veja-se por exemplo Patrícia Melo, que de roteirista de tv impõe em seus livros uma narrativa toda cinematográfica, e ainda recebe elogios orquestrados da mídia... ). Ao contrário, um escritor que vai para o cinema -- como roteirista, quase sempre -- o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são melhores: caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores norte-americanos com Hollywood ,e ainda de Jean Louis Carrière , Dalton Trumbo no cinema europeu.
Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões literárias atuarem numa espécie de contramão, na via inversa do terreno do relacionamento -- ou do embate -- literatura/cinema ; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias por cineastas”, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado : no caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme (e vale lembrar que para Autran Dourado “não existe livro filmado, existe filme baseado em livro” ), mas escreve um livro com elementos e ‘cacoetes’ de filme. Sai de seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo instrumental, na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.
Desejariam cineastas e roteiristas, ao escreverem uma obra literária, responder a Stanley Kubrick -- para quem “ tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” -- provando que ‘tudo que pode ser filmado poderia ser escrito?’...

terça-feira, 4 de maio de 2010

Lima Barreto e a mulher - IX


feminismo


O nosso feminismo
Uma moça, residente no Engenho Novo, nesta capital, foi sorteada, para o serviço militar. Negou-se a servir alegando a sua qualidade de mulher, que tudo está a indicar ser imprópria para serviço de tal jaez.
Eu julgo que a razão e a justiça estão ao lado da moça: ela não pode nunca ser soldado. Isto por todas as leis divinas, naturais e humanas, pondo nesta categoria a Constituição Federal brasileira de 24 de fevereiro de 1891.
Mas, o caso merece considerações e não posso deixar de fazê-las aqui muito rapidamente, com grande desgosto meu.
A Constituição da República diz que "todo o brasileiro é obrigado ao serviço militar, em defesa da Pátria e da Constituição, na forma das leis federais".
Diz também um pouco atrás que "os cargos públicos civis e militares são acessíveis a todos os brasileiros, observadas as condições de capacidade especial, que a lei estatui, etc., etc."
Um feminismo interesseiro e burocrático que aí anda, entendeu de dizer que "brasileiro" neste último artigo está tomado no sentido geral; é tanto homem como mulher; é como réu, por exemplo, em outras leis.
Com tão cerebrina interpretação, umas das damas espertas, dispondo de bons pistolões e alguma sabença das "irmãs", deram para invadir as repartições com os seus deliciosos sorrisos e os seus vestidos bem-cortados.
Hoje, a não ser nas repartições do Ministério da Guerra e da Marinha, não se entra em nenhuma que não se tope logo com uma rua do Ouvidor de datilógrafas, amanuenses e até secretárias, sabendo grego e latim e aspirando à Academia de Letras-, antes de terem publicado a mais desvaliosa plaquette de versos.
Diabo! Eu fui amanuense ou o que quer que seja de uma vetusta secretaria, durante quinze anos, e sei bem o quanto aquilo de fazer ofícios, registros e decretos dá à ambiência das repartições um ar morno e depressivo; sei bem que a graça feminina quebra esse ar magnificamente, como acontece, por exemplo, na repartição da Estatística, que tem sempre o ar festivo e galante de sala de baile.
Mas lei é lei; e a Constituição quando falou em "brasileiro" aí, no tal artigo, não incluiu mulher, porque ela se quis referir a cidadão brasileiro. Tanto não é que a dama sorteada não quer ser soldado, alegando que "nenhuma lei ainda tornou extensivo às mulheres o serviço militar".
É muito engraçado! Para o tal feminismo que anda aí, o "brasileiro" da Constituição inclui as mulheres quando se trata do provimento de cômodos cargos públicos; mas, quando se trata do trabalhoso serviço militar, criado para a "defesa da Pátria", nos termos da Constituição, no "brasileiro" desta, não entra mais a mulher, mas unicamente o homem, sendo preciso uma lei especial do Congresso, para que a "mulher" possa prestar o árduo mister de soldado ou marinheiro.
Não é preciso pôr mais na carta, para sé ver o que visa esse "feminismo" caricato que prolifera pelos solicitados dos jornais. O que ele quer não é a dignificação da mulher, não é a sua elevação; o que ele quer são lugares de amanuenses com cujos créditos possa comprar vestidos e adereços, aliviando nessa parte os orçamentos dos pais, dos maridos e dos irmãos.
É o feminismo que sustenta, com a Constituição na mão, poder a mulher ser escrituraria ; mas teme essa mesma Constituição quando esta, segundo a hermenêutica de tais damas, exige que a mulher vá para a tarimba ou para o picadeiro.
Tenho dito.
Careta 16.04.1921

Voto feminino
A engraçada contenda presidencial que anda por aí, nos jornais e meios políticos, desviou a atenção da população para o projeto do Senado, concedendo voto às mulheres. Eu, porém, não o perdi de vista e digo-lhes por quê.
Esse negócio de ser este ou aquele cidadão presidente da República não tem para mim a mínima importância. Se eu pudesse ser ministro, ainda vá que me interessasse; se tivesse, entre os candidatos, um amigo do peito que ao chegar à presidência, me arranjasse uma gorda concessão com a qual enriquecesse, ainda vá ; se conseguisse com um camarada no cocuruto do Catete, um lugar ou mesmo uma comissão na Europa, na Ásia ou até na África onde pudesse espairecer um pouco o meu tédio, vá; mas, seja Pedro, Sancho ou Martinho, estou certo de que não obterei nada disso tudo nem muito menos. Para que então azucrinar a minha paciência com semelhante questão?
De resto, eu não tenho nenhuma fé nos princípios republicanos. Agora mesmo, nessa questão de candidatura à presidência, vi como eles são elásticos. Vejo que se baralham nas asseverações, escritos e gestos dos seus próceres coisas antagônicas com as suas asseverações, escritos e gestos de poucos anos atrás. Quando pessoas tão eminentes canivetam assim a lógica, um pobre diabo como eu, além de pasmado, deve ficar calado. Sei bem que as coisas da vida não têm lógica alguma, principalmente quando é uma delas o ocupar a presidência da República.
Ainda mais; o dissídio que a questão da escolha do futuro supremo magistrado da República trouxe nos meios políticos, principalmente nas duas casas do Congresso, tirou-lhes o único que, segundo parece, é essencial à existência deles.
Um jornal desta cidade narra um aspecto da Câmara, nestes últimos dias, com as seguintes palavras:
Os gritos ouvidos e os gestos vistos eram completamente estranhos à atual situação econômica. O que aqueles homens, representantes da nação, cuidavam era de injuriar ou aplaudir alguns nomes indicados para a sucessão presidencial, tratavam de competições de bancada de maiores ou menores estados; falavam em perseguições a oficiais do nosso Exército; das viagens do senhor Raul Soares a Belo Horizonte ou do senhor Carlos de Campos, a São Paulo; de telegramas do senhor Borges ou de conversas na praia do Flamengo.
Não chega a ser trágico, mas cômico também não é. É absolutamente desagradável.
Vejam agora só como, com o voto feminino, as cousas se passavam de modo bem diverso.
Dona Deolinda Daltro, que está pleiteando a passagem do projeto, ia para o Senado com um bando de senhoras, senhoritas e meninas, carregadas de flores, e despejava as pétalas sobre a cabeça do respeitável e imenso senador Lopes Gonçalves, que sabe inglês e é o defensor do mesmo projeto, embora seja este de autoria do seu colega Justo Chermont. As flores, porém, foram e irão para o senhor Gonçalves, porque é pessoa notoriamente elegante e trata-se de um projeto que interessa às damas.
Um jornal desta cidade contava o aspecto do Senado quando iam lá as senhoras pleitear tão maravilhoso direito que eu, a bem dizer, nunca quis usar; ele contava assim :
As mulheres interessadas com o caso têm comparecido ao Senado, enchendo as suas tribunas. E como lhes agradasse a defesa documental e valorosa do senador amazonense, as sufragistas nacionais não lhe têm faltado com as justas manifestações de entusiasmo.
Vêem bem os senhores como é diferente essa fisionomia parlamentar da que tomou a Câmara com a questão do senhor Bernardes, Bermudes, Beldroegas, Brederodes ou quem quer que seja aspirante à presidência desta nossa maravilhosa República.
Não tenho nenhuma simpatia pelo projeto, mas julgo-o útil porque dá às casas do parlamento feições floridas e gentis de sala de baile ou platéia de teatro.
Demais, segundo diz o mesmo jornal, as senhoras andam aos abraços com os senadores. Não diz se andam também aos beijos. A folha volante dá até um detalhe tentador:
Da manifestação, já provou o senador Lopes Gonçalves, saudado calorosamente pelas moças que foram ao Senado. Todas disputam a honra de um abraço do senador amazonense. De uma ouvimos a pergunta orgulhosa, feita a uma companheira:
- Já obteve o seu abraço? Eu acabo de receber o meu!
Podia comentar outros detalhes do aspecto que, segundo as folhas, toma a Câmara Alta quando lá se discute a outorga de voto às mulheres. Não é preciso pôr mais na carta. Uma lei que nasce de abraços, só pode ser favorável aos destinos da Pátria.
Careta 09.07.1921

Uma nota
Não cesso de dizer que acompanho o movimento feminista com o maior interesse. Isto não é de agora; desde as priscas épocas de dona Deolinda com os seus caboclos, que assim procedo. Tenho tido raros momentos de prazer e gozo íntimo. Posso assegurar que, como eu, só pode ter gozado tanto, com esse nosso engraçado feminismo, o doutor Lopes Gonçalves, quando foi, em pleno Senado, abraçado pelas discípulas de dona Daltro.
Eu não o fui e não o serei; mas só poder verificar a graça e as coisas jocosas desse nosso feminismo burocrático, dá mais alegria que o abraço das sufragistas nacionais com os seus ramos de flores de presente.
Mas, não é só do sufragismo de dona Daltro que vem o meu riso íntimo; é também de outras feministas. Os senhores devem ter reparado que a nossa religião feminista, mal nasceu, cindiu-se. Há diversas seitas e cada qual mais ferozmente inimiga da outra.
Podia-se escrever até uma história das variações das nossas seitas feministas; mas ficará isto para mais tarde.
Por hoje, como simples nota, fica a seguinte observação. A senhora dona Berta Lutz, sabendo que um ministro mandara ouvir um dado funcionário sobre, se as moças podiam ser admitidas em concurso, saiu-se lá de sua Liga pela Emancipação da Mulher (uma das seitas) e resolveu oficiar a esse funcionário, pedindo que o parecer dele fosse de acordo com o programa de sua "liga".
Esta senhora é funcionário público e devia saber que não é decente ninguém insinuar a um funcionário, seja por que meio for, que os seus pareceres sejam dados em tal ou qual sentido.
Em certas ocasiões chega a ser até crime ...
A senhora dona Berta Lutz devia saber disso. Enfim, o feminismo tem razões, etc. etc.
Careta 27.08.1921

Carta aberta
(a uma senhora que se envolveu numa alta especulação, interessando o Código Penal, e se portou, durante o processo, com a perfeição do mais afeiçoado Pigatti.)

Excelentíssima Senhora:
Dispenso-me de iniciar esta com as fórmulas habituais de saudações, porque o nosso tempo que é de cousas práticas e frutíferas, não permite mais a perda de energia com futilidades de civilidade e boa educação.
Já se passaram os dias e os anos em que um cumprimento bem-feito revelava a cultura e o aperfeiçoamento que o indivíduo tinha trazido a si mesmo. Hoje, não se estima isso; e embora, debaixo de farrapos, se descubra um fidalgo, a gente de hoje não quer saber do fidalgo; só considera os farrapos.
Condorcet - Vossa Excelência sabe quem é? Condorcet, o marquês de Condorcet (não era do Papa), foi preso por causa de suas mãos finas, conquanto estivesse vestido como um simples proletário, e muito pobremente. Conto a anedota. Nos agitados tempos de Revolução, ele era girondino e membro da Convenção Francesa. O partido contrário conseguiu decretar a prisão dos girondinos e Condorcet fugiu e ocultou-se nos arredores de Paris. Saiu certo dia e foi a um botequim tomar café, vestido popularmente. Os circunstantes começaram a observá-lo e notaram que o desconhecido tinha as mãos finas, aristocráticas. Prenderam-no e ele se envenenou na prisão. Note, a Excelentíssima Senhora, que ele não era lá grande coisa em matéria de cuidados com o corpo. Ao contrário. Há uma carta de Mlle. Lespinasse que censura o seu relaxamento. Pois bem: hoje, ninguém olharia as mãos; miravam-lhe as vestes pobres e sacudiriam o olhar para o lado, com asco.
Não estamos, portanto, no tempo de salamaleques. Não há mais delicadeza, nem mesmo nas danças de sala, nem mesmo nos divertimentos públicos. Durante as partidas do tal de futebol, as damas e senhoritas trocam amabilidades de palavras e gestos que faziam corar um frade de pedra; e, às vezes mesmo, elas se atracam com uma sem-cerimônia digna de valentões consumados.
Chamam elas, a isso, torcer e defender as cores dos seus clubes.
É o feminismo em marcha que deixa as secretarias, para manifestar-se nas arquibancadas das arenas do esporte bretão, como dizem os virtuosos cronistas esportivos.
Vossa Excelência, porém, foi mais além na conquista de um lugar ao sol para a mulher, e também na senda das reivindicações femininas.
Vossa Excelência, de pronto, de uma hora para outra, quase sem experiência preliminar alguma, mostrou-se de uma finura e de uma habilidade, para lidar com essas cousas de polícia e de justiça, que devem ter surpreendido os mais refinados profissionais que estão sob custódia, na Pensão Meira Lima.
Nunca neguei capacidade alguma na mulher. O meu antifeminismo não parte do postulado da incapacidade da mulher, para isso ou para aquilo; é baseado em outros motivos, mais de ordem social do que mesmo de natureza fisiológica ou psicológica. Há cousas, porém, Excelentíssima Senhora, que exigem aprendizagem, e prática, além do sangue-frio e um poder exibitório que só uma lenta educação da vontade pode dar, permitindo que se fale a verdade de diversos modos, diante de delegados e juízes. Isto feito assim, pela primeira vez, surpreende e causa pasmo, mostrando, na mulher, capacidades excepcionais para tudo, mesmo sem estudo e treinamento.
Nunca supus a mulher capaz de tanta energia nervosa, capaz de tanta matreirice, pois sempre as vi chorando diante das autoridades, por cousas insignificantes.
Vossa Excelência, porém, mostrou-me que as cousas não se passam sempre assim; e, na boca das mulheres, diante de austeros juízes e severos delegados, a verdade não é nunca uma só, podendo ser ondeante e diversa. Até agora, isto só acontecia quando se tratava falar a maridos ou mesmo a amantes; porém, neste momento, com a iniciativa de Vossa Excelência, o sexo feminino deu um passo além; sabe de pronto emaranhar juízes e delegados. Meus paraabéns, Excelentíssima Senhora; e o meu sentimento é que se haja estreado tão tarde, em papel de tanto relevo e significação.
De Vossa Excelência, etc., etc.
Careta 24.09.1921

A poliantéia das burocratas
A Noite
, numa segunda-feira destas últimas, resolveu fazer um inquérito entre as meninas e as moças recentemente nomeadas funcionárias públicas, depois do advento do feminismo burocrático, instituído pelo senhor Nilo Peçanha, ouvindo ao mesmo tempo os seus chefes, a respeito do trabalho e méritos delas.
A reportagem é fartamente ilustrada com os retratos das senhoritas que auxiliam os governos a fazer a felicidade da pátria. Até agora, eu supunha que o feminismo fosse o partido das moças feias; mas vejo que não. O retrato da leader, apesar de dona Deolinda, vem no centro da primeira página, em "abismo", como se diz em heráldica, tratando-se de escudos.
Todos os chefes estão satisfeitos com os gentis amanuenses; e não podia ser de outra forma. As mulheres têm tanta vocação para os cargos públicos que as suas letras não só se parecem, mas quase são iguais. Indivíduos que têm semelhantes predicados não podem deixar de ser amanuenses ideais, tanto mais que, atualmente, já se usa nas repartições públicas a impessoal máquina de escrever. De resto não é boa recomendação para ser bom escriturário ou ótimo oficial de secretaria, a posse de uma individualidade, de um temperamento; e, raramente, a mulher é dona dessas coisas. Dá, portanto, sempre um bom empregado.
Os gabos dos chefes, inclusive os do sempre simpático doutor Bruno Lobo, são perfeitamente legítimos; e eu o mesmo diria, se fosse diretor ou coisa que o valha, sem faltar absolutamente com a mais estrita verdade.
Ninguém nega que a mulher tenha as qualidades subalternas e secundárias que são exigidas para o exercício de um simples cargo público; mas o que está em jogo não é bem isso.
Está em jogo a maneira irregular e ilegal que tem presidido o provimento desses cargos, por moças e senhoras. Em que lei se hão baseado as autoridades que tal têm feito?
Não respondem. Ou antes: respondem citando consultas, pareceres e outros documentos mais ou menos graciosos, que não podem ter valor legal, isto é, de lei alguma. .
Até bem pouco, para certos e determinados cargos ou lugares públicos, nos Correios, nos Telégrafos, e não sei aonde mais, podiam ser admitidos indivíduos do sexo feminino; mas isso, em virtude de artigos explícitos dos respectivos regulamentos, expedidos por autorização do Congresso.
A coisa estava perfeitamente legal e nada havia que dizer; mas, obedecendo a motivos talvez respeitáveis domesticamente, um ministro entendeu que, à última hora, devia inscrever em concurso, para um lugar de sua repartição, uma moça que, naturalmente, se apresentou à última hora.
Resolveu isso, sem prorrogar, porém, a inscrição para que outras, nas mesmas condições, o fizessem também. Está se vendo que esse feminismo rond-de-cuir nasceu torto e aleijado por diversas razões e há duas principais. Primeira: um ministro não tem competência para decidir sobre semelhantes assuntos, isto é, equiparação dos direitos do sexo feminino ao masculino; segunda: se ele resolveu, no caso vertente, essa equiparação, à última hora, devia, para mostrar isenção de ânimo, prorrogar a inscrição, a fim de que se apresentassem outras candidatas, tanto mais que, na data e durante a publicação do respectivo edital, não se admitia tal equiparação.
É verdade que a Constituição fala que os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros, e, afinal de contas, as mulheres que nascem no Brasil são gramaticalmente, em conjunto com os homens, brasileiros; mas também afirma a Constituição que todo o brasileiro é obrigado ao serviço militar; entretanto, quando se trata de saber se a mulher pode ou não ser soldado, há hesitação em se decidir que também ele é o brasileiro de que fala a Constituição, e pede-se uma lei ao Congresso. Desde, porém, que se trate de fazer uma dama secretário de qualquer coisa ou amanuense disso ou daquilo, a questão fica logo resolvida: pode exercer o cargo. O Congresso é dispensado.
Tanto esse "brasileiro" da Constituição não tem sentido estreitamente lexicográfico, mas sim um caráter menos literal, que até agora se espera que o Congresso dê o direito de voto às mulheres, para que se possam alistar no Partido Republicano Feminino e noutras facções que estão em dissidência, mas, nem por isso, deixam de ser perfeitamente respeitáveis.
A Noite, como disse acima, nessa sua edição prematura de segunda-feira, entrevista as gentis burocratas e as suas opiniões constituem um precioso florilégio que convém comentar, embora brevemente.
Nele - o que é de admirar - há poucas manifestações de sabichonas, conquanto fosse de esperar que, nesse feminismo paletó de alpaca, houvesse muitas descendentes de Filaminta.
* * *
Dona Berta Lutz e, com ela, muitas outras colocam a questão sob o aspecto do direito da mulher ao trabalho próprio. Havia muito que epilogar a tal respeito. Adiemos, porém, os comentários.
Diz essa senhora, que bem podia também ser sufragista, tão completo e acendrado é o seu feminismo:
- A meu ver, o trabalho é o ponto capital do movimento feminista. Não só porque representa o eixo principal em redor do qual se têm vindo grupar todas as reivindicações feministas, como também porque só ele permitirá a solução integral da questão.
E continua por aí, reformando o Código Civil e outras instituições respeitáveis. Mas, eu direi simplesmente : minha senhora, então a mulher só veio a trabalhar porque forçou as portas das repartições públicas? Ela sempre trabalhou, minha senhora, aqui e em toda a parte, desde que o mundo é mundo; e até, nas civilizações primitivas, ela trabalhava mais do que o homem. Dou o meu testemunho pessoal. Desde menino - e já tenho quarenta anos feitos - que vejo trabalhar em casa, fora de casa, em oficinas, ateliers de costura e até na roça, plantando, colhendo, guiando bois ao arado, etc.
Eu lhe conto, minha senhora. Certa noite, há três anos, um amigo meu, o engenheiro Noronha Santos, levou-me à Fábrica de Tecidos Rink, na Rua do Costa, onde havia serão e ele tinha um lugar elevado. Lá fui e o meu ex-colega fez-me correr aí pelas dez horas da noite, mais ou menos, todas as dependências do estabelecimento fabril.
Havia muitas mulheres junto aos teares e outros maquinismos cujos nomes não sei. Uma delas, porém, chamou-me a atenção: era uma negra velha que, sentada no chão, tinha diante de si um monte de lã, limpa, alva, recentemente lavada quimicamente, e o seu cabelo, o da Regra, era já tão branco e encaracolado que desafiava a alvura da lã que estava diante dela.
Pergunto: esta mulher precisou do feminismo burocrata para trabalhar, e não trabalhava ainda, apesar de sua adiantada velhice?
Eu lhe conto inda mais. Uma tarde, fui à Livraria Alves falar sobre negócios de um livro com o respectivo proprietário, que estava ainda são e forte. Subi ao primeiro andar, para entender-me com ele, no seu escritório. Lá em cima, conversando com o terrível livreiro, observei uma porção de moças, que de avental completo, quase um roupão pardacento, cabelos em poeira dos, com a célebre poeira Alves, faziam pacotes de livros, a fim de serem expedidos para aqui e para ali. Pergunto: essas moças não trabalhavam? E, a menos que a senhora julgue que trabalho seja só sentar-se a um amplo bureau e muito solenemente distribuir serviço aos amanuenses, creio que há de concordar que nunca se negou o direito de trabalhar ao sexo gentil.
Como já disse, não há, nesse feminismo rond-de-cuir, muitas descendentes de Filamintas. Todas as representantes dele são moças simples, que só têm o desejo de ter um ordenado razoável para se manter e auxiliar os parentes. Nada mais justo e respeitável ; entretanto, essa questão sugere tantas outras de interesse mais alto que não é possível referir-se a ela sem alguma aspereza, diante da sem-cerimônia com que ministros e presidentes do Brasil se julgam capazes de tudo decidir por si, as questões mais delicadas, como essas, sem esperar um debate amplo, largo, na tribuna e na imprensa, para que bem aclarado fique o problema e esclarecida a opinião pública.
Entretanto, não é o que se está fazendo com esse feminismo de secretaria. O que se está fazendo com esse feminismo bastardo, burocrático, é uma coisa de momento, clandestina, para servir a amigos, disfarçando-se a bastardia das medidas com pareceres graciosos, familiares, e consultas tendenciosas, resolvidas por Sancho Pança, governador da ilha da Baratária; e, por mais respeitáveis que sejam os nomes que consignam tais pareceres e consultas, não pode o meu respeito segui-los até esse ponto, porquanto não é da competência deles legislar sobre o assunto. Legislar, só o Congresso Nacional; e ele ainda não falou a respeito. Continuemos:
Na poliantéia da A Noite, há opiniões curiosas e sinceras.
Uma delas é a daquela moça que, perguntada se gostava da carreira, respondeu:
- Gosto, mas gostaria mais de ficar em minha casa. Devo dizer-lhe que os meus companheiros são muito distintos e me encorajam no trabalho.
Está aí uma moça que não,merece castigo. O chefe da seção do Ministério da Agricultura, Marcos Martins, é um pouco rude, mas talvez não esteja longe da verdade, a sua opinião.
Ele atribui ao prestígio da saia o sucesso na classificação das moças, em concursos.
Em exames, eu os fiz muitos, o ascendente das moças e meninotas sobre os examinadores é sabido. Quando eu fazia preparatórios, moça que entrasse em exame tirava distinção pela certa. Estava a ver-se que elas sabiam tanto ou menos que nós, mas a distinção era inevitável, enquanto nós, rapazes e meninos, gramávamos na plena e até na simples, com as mesmas respostas certas.
Fiz o meu último preparatório, há quase vinte e cinco anos. Guardei nomes de várias "colegas" acidentais, daquele tempo. Apesar das sucessivas distinções, todas deram em "droga".
Está aí.
As mulheres têm muita aptidão para a retenção e para a repetição, sobretudo nas primeiras idades; mas não filtram os conhecimentos através do seu temperamento, não os incorporam à sua inteligência, ficam sempre como estáticos a elas, não os renovam em si. Daí, a sua pouca capacidade de invenção e criação; mas daí também os seus sucessos nos exames e concursos. Tudo está na ponta da língua... '
Prefiro a criação, a invenção, as lacunas no saber que dão lugar à imaginação criadora, do que a repetição pura e simples.
Muito boas amanuenses podem ser, as mulheres; serão péssimas chefes, piores que os carrancas homens, tal deve ser o seu respeito ao estabelecido nos regulamentos, nas praxes, etc.
Estou, por isso, com aquela moça da Agricultura que disse ao repórter da A Noite, ao ser inquirida:
- Qual é a sua aspiração, senhorita?
- Só tenho uma aspiração, como funcionária: não ter como chefe outra mulher.
Certamente muitas não pensam assim como essa funcionária despachada, conforme se diz em linguagem familiar.
Rio-Jornal 26-27.09.1921