quarta-feira, 13 de maio de 2009

“nasci no 13 de maio ,por isso sou assim ,negro e marginalizado(...)”


a bem da justiça e da riqueza cultural de um país que se pretende civilizado, o Brasil não deve deixar de comemorar o nascimento, em 13 de maio,dia , de um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos – que não chegou a ser um virtuose, mas produziu pelo menos três dos maiores romances da literatura nacional , um número significativo de pequenas obras-primas do conto e um conjunto excepcional de crônicas que representam um retrato da cidade do Rio de Janeiro e do Brasil como nenhum outro construiu em seu tempo; além de memoráveis obras de sátira.

São de Afonso Henriques de Lima Barreto (13.05.1881/01.11.1922) os três romances ímpares – Recordações do escrivão Isaias Caminha (1909)-- no ano presente, centenário de sua publicação em livro -- Triste fim de Policarpo Quaresma (1911), Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá (1919); saíram de sua pena muitas obras-primas contísticas-- como “O homem que sabia javanês”, “A nova Califórnia”, “A sombra do Romariz”, “O moleque”, “O número da sepultura”, “A biblioteca”, a série (quase inédita) “contos argelinos”, um conjunto (também semi-inédito) ‘contos políticos’ -- e as vigorosas crônicas publicadas em inúmeros jornais e revistas -- abrigadas nas coletâneas póstumas Bagatelas (1923),Feiras e mafuás (1953), Marginalia (1953),Vida urbana (1953) ; além de duas marcantes novelas --Numa e a ninfa (1915) ; Clara dos Anjos(1948) -- memoráveis obras de sátira – Aventuras do dr. Bogoloff (1912), Os Bruzundangas (1922) e Coisas do Reino de Jambon (1952) – memorialística -- Diário íntimo (1953) e O cemitério dos vivos (1953) -- e de crítica literária --Impressões de leitura (1953).
Tanto na ficção quanto na obra não-ficcional, virtuose não podia ser, porquanto a par de outros aspectos — um deles, criticado que foi por alguns (incautos) por força de um “estilo desleixado” e um texto “cheio de erros gramaticais”(sic) — era conscientemente praticante de uma escrita diferenciada de seus pares, até porque ele mesmo diferenciado literária,ideológica e socialmente de seus contemporâneos. Seus textos são exemplos de relações e interações entre modos tradicionais de narrar e as especificidades da escrita moderna : com seu estilo simples, direto e objetivo, que feria o convencionalismo literário da época, impregnado de falsas concepções estéticas, floreios , etc ,impôs os prenúncios do Modernismo logo a seguir irrompante na cultura brasileira, cujos primeiros elementos e formas apareceram justamente pela linguagem típica da escrita barretiana -- tanto que foi reverenciado, à época, pelos modernistas e hoje consagrado como um renovador (revolucionário) e autêntico formulador da linguagem literária brasileira que atravessou o século XX e tem sua expressão contemporânea no que se faz hoje na ficção urbana.
A problemática existencial de Lima Barreto, marcada sobretudo pela origem negra e pobre e por dramas familiares, enfim pela marginalidade, formaram, sedimentaram e conduziram sem dúvida o espírito de intelectual combativo,engajado, consciente ,atuante, fazendo-o destoar do cenário literário de seu tempo e forjaram uma temática ficcional e uma forma literária que rompe com os cânones da escrita de então. O tom de denúncia conferido por ele à sua literatura emerge com muita intensidade e frequência em todos seus textos , seja nos romances e contos seja nas crônica --- tematizantes em sua essência da discriminação racial e social, o preconceito de cor, o vazio moral, intelectual e ético dos políticos, a ganância e a ambição, o arrivismo, o bovarismo, a miséria e a opressão social .
Nos artigos e crônicas,nos romances e nos contos, Lima Barreto é um dos mais profícuos e instigantes analistas da realidade brasileira. Sua obra ficcional e não-ficcional desenvolvem-se em torno de cinco eixos temáticos : a política; a mulher; o cotidiano da cidade; o subúrbio; a vida literária – mas com um tema nuclear : o poder e seus efeitos discricionários — o poder visto e descrito por ele como “o variado conjunto de elementos, vetores e procedimentos encadeados no interior da sociedade, compondo grandes e pequenas cadeias, visíveis e invisíveis, tendentes a restringir e constringir o pensamento dos homens, coibindo-lhes as possibilidades de afirmação, pessoal, cultural, profissional, social, e a justa inserção social”.
Na ficção ,poucos, na literatura brasileira – nem mesmo Machado de Assis-- criaram e apresentaram um elenco de personagens tão variado e vasto – homens e mulheres despojados pela sorte, políticos empenhados unicamente com o poder , pseudo- intelectuais abarrotados de retórica e voltados para a futilidade, militares crentes da própria infabilidade e “ignorantes das coisas da guerra”, os donos de jornais venais e corruptos, os magnatas, banqueiros, empresários, fazendeiros do café, os burocratas ,pequenos burgueses, arrivistas,charlatães,almofadinhas, melindrosas,aristocratas, gente do subúrbio, operários, artesãos, vadios, mendigos,bêbados, meliantes, prostitutas,mandriões,subempregados, artistas, coristas, alcoviteiras, funcionários, moças casadoiras, noivas, solteironas, loucos, adúlteros, agitadores, usurários, estrangeiros.Sobretudo procurando dar voz e vida aos “humilhados e ofendidos”, aos excluídos sociais ,em especial ao negro : falava sempre em escrever “a História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência em nossa nacionalidade” – que no entanto ficou apenas no projeto ; pensou também num romance descrevendo “a vida e o trabalho dos negros numa fazenda... uma espécie de Germinal negro [ referência à famosa obra de Èmile Zola], com mais psicologia especial e maior sopro de epopéia”, sustentando que seria sua “obra-prima” com a qual introduziria na literatura brasileira uma nova escola, o “negrismo”—que não levou adiante; mas em 1903 escreveu uma peça teatral em um ato, “Os negros”, que permanece praticamente inédita [oportunamente a publicaremos neste espaço, o que se constituirá em empreendimento histórico]. Esses ideais e projetos na verdade iriam em parte consubstanciar-se no romance que começou a escrever em 1904, “Clara dos Anjos” – originado do conto com mesmo título – não concluído e que veio a ser publicado postumamente (1948) como novela inacabada : nela, expõe como tema a humilhação não apenas da mulher mas de toda a população negra do Brasil – exatamente no dia 13 de maio a mulata Clara é seduzida e deflorada por um rapaz branco que recusa casar e a abandona ...
A Lima Barreto cabe o mérito de ter introduzido na literatura brasileira, de forma contundente,incisiva, consistente – como nem os autores do Realismo o fizeram – a temática social de modo crítico. O caráter militante de sua literatura adquire funções revolucionárias –inclusive tendo ele,ideologicamente se manifestado como um “maximalista”,que equivalia à época ser um misto de anarquista e socialista (em algumas crônicas enalteceu a Revolução Russa de 1917 e o novo regime implantado) – sua escrita combativa utiliza-se da ficção como meio de expressar os problemas sociais que enxerga na sociedade brasileira, especialmente na ordem republicana.
A rigor e na essência, Lima Barreto sempre tratou mais de política do que qualquer outro tema: ninguém como ele, em seu tempo, escreveu tanto sobre o tema e,por extensão, sobre questões sociais . Sua ‘literatura militante’, assim por ele definida, determina o caráter marginal de sua obra ; sua visão crítica da sociedade o fez enveredar concreta e irreversivelmente no caminho da luta social; nos jornais e revistas investiu contra todos os signos do poder, nos textos ficcionais denunciou as profundas injustiças da sociedade brasileira. As colaborações para revistas e jornais ‘alternativos’ da época, oposicionistas -- O Debate, O Careta, A Lanterna,
Rio-Jornal,A .B . C., Hoje -- constituem o conjunto de maior teor explícito de crítica política e social aos problemas do País e à República, da qual se fez opositor irascível e irreversível, implacável e demolidor : utilizando os recursos da sátira, da ironia, da caricatura, da crítica contundente, desmontou todo o esquema de sustentação do regime republicano recém-implantado. Crítico intransigente dos presidentes republicanos, da intervenção dos militares na política , de formas de governo autoritário e ultracentralizado ,de todo e qualquer tipo de violência na sociedade, das ideologias intolerantes , não se cansou de causticar por toda sua obra as mazelas do governo republicano, o grau de corrupção política e econômica que empestava o regime .
Ao mesmo tempo, nunca silencioso sobre seu tempo, Lima Barreto não poderia pois ficar alheio à situação da mulher na realidade social brasileira do início do século XX, época de tantas e profundas transformações na sociedade. Sempre deu à mulher espaço significativo em sua obra não-ficcional e ficcional. Retratou-a e a fez protagonista nos romances e novelas — haja visto Olga e Edgarda em Triste fim de Policarpo Quaresma; Clara e Castorina em Clara dos Anjos; Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília em Diário íntimo , Edgard e Ângela em Numa e a ninfa — e em contos como “Um especialista”, “O filho da Gabriela”,”Um e outro”,”Miss Edith e seu tio”,”Cló”,”Adélia”,”Lívia”,”Clara dos Anjos”,”Uma vagabunda”,”Uma conversa vulgar”,”O número da sepultura”,”Quase ela deu o sim, mas...”,”Numa e a ninfa”,”A cartomante”,”O cemitério”,”Na janela”, “A mulher do Anacleto” : em todos, as mulheres têm sempre atitudes e comportamento progressista e são superiores aos maridos.Em artigos e crônicas ,apontamentos e notas, comenta a situação da mulher perante o casamento, a moral que lhe é imposta pelos códigos sociais, o mundo da prostituição , as oportunidades educacionais e profissionais,os direitos femininos, o feminismo e o início do movimento feminista no Brasil, o voto feminino,a literatura feminina, a desigualdade de julgamento nos casos de adultério (célebres – e vigorosos -- são seus textos de protesto contra a absolvição de homens em casos de crimes de uxoricídio nos quais eram evocados o indefectível ‘legítima defesa da honra’...).
Em outro viés, no cotidiano da cidade, estão suas tiritatibes ficcionais e não-ficcionais contra a modernização, a reforma urbana, o cinema, o carnaval e sobretudo futebol — visto por ele como ‘instrumento e meio de estrangeirismo’, de assimilação de elementos, valores e hábitos copiados em prol de uma “pretensa,falsa, artificial e detestável progresso bem a gosto desta República de bacharéis e aristocratas”.

Não mais fosse por outros argumentos, mormente por motivos ideológicos, foi criticado (por vezes e por alguns ainda é) pelas “imperfeições de estilo” e pelo “tom caricatural” com que retrata seus personagens . Os exemplos de “erros gramaticais” apontados em sua obra ficcional não caracterizam necessariamente um desconhecimento das regras do escrever, e sim o que filólogos configuram como “concordância ideológica” : segundo o professor e filólogo Silva Ramos defeitos e irregularidades em Lima Barreto decorrem não de uma ‘imperícia gramatical’ mas provêm de uma escolha feita pelo autor, dentre mais de um processo de expressão,que possibilita a tradução de seu pensamento ou sentimento : não são as palavras, a ordem em que são dispostas que valem, mas as idéias que exprimem, os sentimentos que fazem vibrar. O segundo elemento, que absolutamente implica em ‘superficialidade’ , encontra resposta à altura por parte de Lucia Miguel Pereira , segundo quem Lima Barreto, assim como Machado de Assis, tem sua escrita contística caracterizada por “explorações em profundidade, suas criaturas sempre indagando a existência”.( in Prosa de ficção: de 1870 a 1920 )
Marginalizado por suas origens e condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à modernização’, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade brasileira que lhe foi contemporânea .Seu projeto era um projeto para uma vida inteira de militância literária contra o preconceito, mas também “contra os falsos intelectuais, contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra uma literatura só de deleite, como ornamento”. Para ele, a literatura era uma verdadeira missão – ideal expresso categoricamente no artigo “Amplius!”., publicado originalmente no primeiro número da Floreal, em 25.10.1907 , depois em A Época, em 18.02.1916, e incorporado como abertura da coletânea de contos Histórias e sonhos ), em que sentenciava : “(...)A literatura do nosso tempo (...)possa ela realizar, pela virtude da forma,(...) a comunhão dos homens de todas as raças e classes, fazendo que todos se compreendam, na infinita dor de serem homens, e se entendam sob o açoite da vida, para maiorglória e perfeição da humanidade. (...).” Conferiu à sua obra o sentido militante de uma “missão social, de contribuir para a felicidade de um povo,de uma nação, da humanidade” – conceito reflexivo de felicidade também exposto nas páginas do romance Vida e morte de M.J.Gonzaga de Sá quando o protagonista conversa com o personagem Augusto Machado :
“(...) Imaginas tu que Mme. Belasman, de Petr6polis, tem um grande joanete, um defeito hediondo, com o qual sobremaneira sofre ; e o operário Felismino, da Mortona, orgulha-se em possuir um filho com talento. ( ... ) à vista disso, poderás dizer que todas as damas de Petr6polis são felizes e os operários da fundição são desgraçados? Há média possível para a felicidade das classes? N6s, os modernos, nos vamos esquecendo que essas hist6rias de classe, de povos, de raças, são tipos de gabinete, fabricados para as necessidades de certos tipos de edifícios l6gicos, mas que fora deles desaparecem completamente ( ... )”

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Machado e a crise


há exatos 145 anos, uma crise econômico-financeira assolou a praça do Rio de Janeiro(a Corte), e Machado de Assis, claro, tratou dela em crônicas.